Adivinha-se essa falta logo nos primeiros capítulos. Underwood cativa pelos comentários sarcásticos (mas altivos), pelo desprezo que sente por tudo o que é mesquinho (ainda que sejam, ou talvez especialmente, as necessidades alheias). Talvez em algum momento surja em nós a incompreensão de por que continuamos assistindo, mesmo reconhecendo a manipulação, a perversidade, o oportunismo, a deslealdade e o interesse próprio como único motor da ação. Porque temos tudo isto dentro de nós mesmos, já me dizem aqui os amigos com quem converso a respeito. E eu respeito muito essa posição meio psicanalítica, mas o que me intriga é essa forma sedutora com que o mal se apresenta. E como se reproduz e, pouco a pouco, se torna pouco menos que normal. A potência que tem essa sedução de se apropriar dos nossos sentimentos, dos nossos valores, da nossa própria moralidade.
O fato é que a nossa abstinência de pensamento próprio e autônomo chega para cobrar-nos a tal conta, e é alta. Essa forma utilitária e perversa de tratar o outro, e neste caso especialmente a mulher, está por todos os cantos, e é promovida, e aceite, por todos os lados. Seja no outdoor ou na propaganda da revista de moda, numa série inofensiva ou na grande bilheteria, na conversa do bar na sexta fim de tarde, na sua rodinha de amigos homens, na piada que chega pelo twitter e faz sorrir, ou numa corte ministerial formada apenas e totalmente por homens. Dirá você que nada disso tem realmente relação – e eu lhe digo que tem, porque o nosso coração e o nosso cérebro aceitam e se acostumam rápido demais o que nos chega bem vendido, e mais rápido do que você percebe a sua boca repete a estupidez que seu ouvido acabou de escutar.
Essa conta, que todos pagamos hoje junto com essa menina, vem embrulhada em mil tons de cinza. Este tempo todo em que não pudemos ou não quisemos pensar a respeito, e este nosso silêncio histórico, esta nossa necessidade de sermos tolerantes até mesmo com a iniquidade, compactua com a ferida alheia. Passamos tempo demais observando, aceitando, envergando, querendo enxergar alguma valiosa virtude nos jogos sedutores da escuridão, e silenciando quando duvidamos dela. Esse silêncio obsequioso, que pretensamente diz respeitar o outro, dar-lhe a chance de defesa quando já se sabe de todo indefensável, compromete e fere de morte a todos nós.
Ilustração para The imp of the perverse (O demônio da perversidade), conto de Edgar Allan Poe