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Ofélia, a minha avó

Hoje, a minha avó faria anos. Se não me engano, 110. Metade do que sou foi ela quem me ensinou e às vezes é bom fazer contas às tantas coisas que guardamos na memória impressa na pele. Convivi anos com ela, de forma estreita e próxima, na mesma casa, à mesa, à tarde, nas idas aos médicos e aos dentistas. A minha avó tinha uma grande preocupação em não desperdiçar nada. A ter atenção ao valor que a vida tem. A vida de todos. A vida de tudo. Mostrava-me fotografias das crianças na Etiópia, e as minhas mãos pequenas passavam os dedos pelos olhos encovados da fome. Não me lembro de me dizer nada, mas eu aprendia a saber que havia muito sofrimento para além do meu próprio, que aliás se tornava tão pequeno. É preciso saber dar medida às coisas.

Foi com ela que aprendi a beber chá, e não pretendo deixar esse hábito exatamente por isso, porque é uma herança cara e amorosa, que me conforta e alivia qualquer coisa. Aprendi a torrar pão à braseira. A fazer maçã e pera cozidas. A rir, à noite e às vezes, desse Jô Soares que partiu por esses dias, o Viva o Gordo a apresentar-me esse país onde afinal eu viveria a maior parte da minha vida. Sentava-me ao lado da sua cadeira, no chão, o televisor a preto e branco lá longe pra não ferir os olhos. Se os fecho, os olhos, sinto as suas mãos a desfazerem os caracóis dos meus cabelos.

Vejo seu silêncio depois do almoço, olhos fechados, o terço a correr as contas pelos seus dedos. Vejo o telefone, e a sua mão a anotar a chamada que o meu avô devia acudir. Um parto eminente, uma queda de cavalo, uma febre no filho mais novo, um ataque de pânico, tudo fazia o meu avô correr pelas estradas. A minha avó atendia o telefone. Fosse noite, fosse dia.

Ensinou-me muitas coisas. Tricot, crochet, costura, a passar roupa. Tivesse eu sido uma criança aplicada teria hoje muitos dons, da maneira como foi tenho todas essas capacidades, e junto a dificuldade nos finalmentes dos acabamentos. Tinha pressa de viver quando era criança. Agora estou melhor.

Íamos às compras. Ao talho, à mercearia da Polícia, à praça do peixe. Não me ensinava nada e eu aprendia tudo. Observava, eu que devia ter uns olhos grandes. As minhas cinco tias, alicerces da minha infância, saberão disso melhor. A simpatia rodeava as relações da minha avó com as pessoas. Sem exageros, sem grandes manifestações, a minha avó parece-me ter sido uma pessoa contida. Soube logo cedo, orfã, perceber que a vida demanda sacrifício e empenho, força de vontade e persistência. Alguns desses aprendizados eu fui tendo pela vida afora, sempre a sua lembrança em meu encalço.

Corrigia-me. As maneiras, as palavras, as mentiras, que mais eram excessos de fantasia e de vontade de ter mãos maiores do que tinha para agarrar o mundo, esse mundo recheado de lugares chamados Etiópia. Permitiu-me os sonhos. De ser agricultora, de ter cães, de ter um quintal imenso convertendo-se ora em campo de refugiados ora em praça de batalha, de conversar sozinha com todos os amigos imaginários que me apetecesse e de ter todas as ocupações, profissões e sabedorias que a fértil imaginação me oferecesse. Digo que permitiu porque não me disse nada, nem não nem sim. Hoje, tenho certeza de que acompanhava todos esses processos. Vigiava, com certeza. Algumas vezes se entristeceu, e eu soube sem palavras. Quando descobriu que eu fumava, por exemplo. Soube pelo olhar e pela forma de fechar a porta do quarto. Repreensões silenciosas que me quebravam por dentro, por quebrar-lhe a confiança em mim.  Foi talvez a primeira a dizer-me que é preciso ter cuidado com o orgulho. Ensinou-me a tudo fazer e a nada ostentar. Silenciava. Ajudava o que podia e quem podia, desdobrava-se, mas era rara no mostrar-se. A sua fé, imensa e majestosa, guardava-se dentro de si, no relicário de si mesma, nos momentos de oração e nas ações do cotidiano. Em momentos era enérgica, talvez fosse voluntariosa (isso escapou-me à observação infantil), e eu acho que ela gostava da modernidade da vida.

Não fui uma criança fácil e com certeza fui uma adolescente ainda mais difícil. A minha avó saiu da nossa vida terrena quando eu tinha 16 anos, no meio das minhas turbulências. Não posso dizer que não lhe pude dizer tanta coisa, porque naquele momento nem sei se teria o que dizer que pudesse ser dito. Não pôde ver a pessoa em que me tornei, a entregar afinal a minha vida ao que ela gostaria que eu tivesse entregue. Todas as suas preocupações teriam se desfeito. Assim espero, de onde me veja, sinta. Acho mesmo que ela sorri e se alegra, e deve saber que o plantio foram as suas mãos que fizeram.

Essa é uma das nossas fotografias favoritas, que não são muitas, minha avõ Ofélia e eu. Penso que o amor e a tranquilidade que recebi dela, a espiritualidade preciosa, a religião bem professada e entregue, a condução gentil e firme, sem arroubos, ofereceu-me um mar, onde navego até hoje, e a sentisse ao meu lado sempre. Como esse mar da Foz, o fundo dessa imagem de tantos anos, e a chávena de chá aqui ao meu lado. Só mudam os continentes, a líquido permanece sempre amor.

11 respostas

  1. Uau! obrigada por compartilhar a sua história, quantos ensinamentos…
    Me emocionei! uma grande inspiração, pensei na minha relação com a minha avó, com a minha mãe e com os meus filhos (que ainda posso fazer diferente…).
    Salve a Ofélia!!

  2. Que lindas memórias, carinhosas… até me deu vontade de escrever também sobre minha avó, de quem tenho poucas mas boas memórias de minha infância, das doenças infantis no colo dela, na cadeira de balanço… obrigada, querida ❤️

  3. Ai Ana amada! Que saudades tu me promoves! De ti, de nós nas noites no Verbena!
    E muitas tantas que nem são de coisas vividas, não ainda.
    Talvez lá no futuro….

  4. Querida…
    Que lindo, quantas lembranças. Enquanto lia, um filme se desenrolava na minha frente. Também revivi minhas memórias da única Vó que convivi, Maria!
    Que presente ecoando Ofélia por todos os lugares, Salve Você, Salve Ofélia, Salve as lembranças e o seu dom de traduzir essas memórias nas mais belas palavras.

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