You lock the door
And throw away the key
There’s someone in my head but it’s not me
And if the cloud bursts, thunder in your ear
You shout and no one seems to hear
And if the band you’re in starts playing different tunes
I’ll see you on the dark side of the moon
Ligação na madrugada. Amiga aflita. O que faço é sair da cama, entrar no carro e ir até sua casa. Faz frio, está escuro e chove. A porta está aberta quando chego, a entrada molhada, a mesma escuridão dentro que fora. Entro muito rápido, agarro-a por um braço e arranco-a de dentro.
Tem uma hora, digo eu a ela, que é preciso fechar a casa, trancar e jogar a chave fora. Deixar tudo lá dentro como está, não trazer nem uma agulha sequer, nem uma poeira. Nada. Porque há casas que são assim, como essa sua onde você veio se meter: inutilidades completas, cheias de pormenores irrelevantes feitos só e apenas para confundir a sua cabeça, dando a entender, fazendo de conta, parecendo que… e nada. É só vazio. A única coisa que tem dentro dela são as coisas que você construiu. As prateleiras esculpidas na parede para guardar lembranças de viagem. Os armários à espera das colchas tecidas, dos fios trançados. As panelas e os pratos e os talheres aguardando o almoço feito por alguém que não você. Você não vê?
All that you touch
And all that you see
All that you taste
All you feel
And all that you love
And all that you hate
All you distrust
All you save
É nada. Você não vê?
Vamos até o ponto mais alto da cidade, o vento fazendo seu serviço do lado de fora do carro. Ela se encolhe no banco. Não me ouve, só olha pra dentro de si mesma. A casa está dentro dela. Este é o lado escuro da lua.
Digo-lhe as palavras óbvias: melhor (claro) é não se ocuparem nunca jamais casas assim. Não se permitir a morada em mofo pintado pra parecer reformado. Mais tempo, menos tempo, o mofo aparece, junto com a sua pestilência. Mas às vezes entra-se numa, porque era preciso, não tinha jeito, faz parte e esse longo etcetera que seus amigos (eu incluída) tentarão usar para consolo, embora todos eles e você mesma saibam, de antemão, que não passam de desculpas pra aliviar a alma. E nessa hora de agora, essa hora precisa, aqui paradas dentro do carro em frente ao abismo de pedra: não é alívio. É tormento. Seus olhos dizem-me isso. E eu calo-me.
Quero dar-lhe a mão. Abraçá-la. E só quando percebo que é a chave da casa que ela tem na mão é que me dou conta. Por isso a casa dentro dela. Por isso seus olhos as janelas escancaradas gritando crueldade em silêncio. O sangue escorre por dentro dos seus olhos, e eu não consigo estancá-lo. E dói, como se fosse em mim, esse sofrer calado. Digo-lhe: entregue-me. Eu jogo. Lá do fundo do seu olhar alguém se contorce dizendo não. Alguém dentro dela luta. Quem é essa, que diz não à salvação?
Largue essa chave. Pare de procurar luz onde a escuridão cravou sua garra. Você não vê? As janelas não abrem, a porta é emperrada, essa casa que você insiste em querer arejar está cheia de pregos e tábuas, como cidade abandonada no velho oeste saqueado. São só restos, amiga minha. Só restos de mil vidas mal vividas, todas elas lado a lado, todas elas estendendo mãos e recebendo facas. E quando digo “mil vidas”, quando a olho do fundo dessas mil vidas, seus olhos se espantam, e as mil vidas se espantam neles, e a mão abre-se por fim.
Agora, não a vejo, junto ao abismo. A neblina acompanhou-a até à borda. Percebo um movimento da sua sombra na direção do vazio. Uma luz brilha um instante e cai. Espero que seja a chave, digo em voz alta. Abro os olhos, e acordo.