Os olhos de Vó Chica, quando fala mansamente, fecham-se para verem melhor. Acho que a claridade do dia cria nuvens nas suas retinas. Seu hálito parece desfazer-se em açúcar, e desta vez deixou antes de ir-se um cheiro forte de alfazema. Vó Chica responde às pessoas como se o tempo nunca acabasse, como se vivesse num mundo em que tudo, até ela, é eterno e interminável. Num desses dias estava falando sobre o que se aprende nessa vida – e por que parece tanto, às vezes, que se demora a entender as coisas que parecem tão óbvias. Dizia ela assim:
“Nesta vida, filha, o que mais se aprende é aprender. A vida inteira é aprendizado, mas não é dentro dela que se aprende – é quando se está pra sair dela, quando o parto do lado de lá se avizinha. Aí, sim, é que se aprende. O caminho da vida é só processo de saber aprender nessa hora. A vida é um lento preparo para o dia de chegar-se pro lado de lá. Quando a vida está de partida, e as malas na mão de quem parte, o filme na estação é o de todos os dias, enfileirados como árvores na beira da estrada. De vez em quando, a máquina desacelera, e há mais calma pra reparar nos detalhes, pra encher os olhos de águas, pra encharcar o coração de gratidão e um pouco de saudade. Outras horas, a velocidade é tanto, que só o que se vê é uma coisa aqui, e outra acolá. Essa vida que desfila – é nessa vida que se aprendeu, e agora, assistida, é que se aprende e se entende tudo o que aconteceu.
De pé, diante do nada, aprende-se que abismo é passagem. Que a vida tem qualquer coisa de fantasma: nada do que se pensa palpável existe para além do seu tempo. A luz que se abre depois, como uma fenda rasgada entre as nuvens, deixa escapar as águas desse nascimento ao revés. São as águas que descem do céu, e separam as membranas do que vive antes do que vive depois. Por enquanto, a vida ainda palpita; os caminhos podem ser percorridos; vão se juntando em cestarias as peças que são recolhidas. Mas o todo se contempla à distância, e de lá acenam os tons e as cores, as figuras se desenham sem fugir – isso, filha, só depois, e só se o traçado tiver sido pensado, medido, calculado, vivido e refeito quando preciso. Não há arrependimento quando se olha o todo que passa, na hora que a vida se escoe; é uma imagem que se compõe como cena, como o todo que foram todos os seus movimentos. E aí, sim, se aprende. E se festeja e se acertam as dores, as flores e os espantos.
Por isso não aceite, filha, enquanto do lado de cá, as coisas tal qual apareçam. Nem desastre, nem barbárie, nem falta alguma de humanidade que queira fazer morada em sua casa ou lance suas cordas sobre a terra. Desarmar é viver a verdade, é levantar toda vez de olhos novos, é ver o outro naquilo que carrega – mas não tinja, não orne, não omita. Se a barbárie está à solta no mundo – é porque o preparo pra aprender anda chamando. Sinta as dores do longínquo, e erga as mangas dos seus braços. Não se ausente, nem se cale, nem concorde: seja uma ponta de lança brilhando constelada com aqueles que querem verdade. É das luzes plantadas na terra que rebrota a claridade do mundo.”
Imagem: flor de alfazema
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