São Paulo, esquina de avenidas, zona sul, pouco passa das seis.
Cansada que estou, dormito a cada farol vermelho. Dou graças que São Paulo seja esse caos de trânsito parado e semáforos de longa espera. Durmo a cada dez minutos, e aos poucos recupero as noites semi dormidas.
Acordo com um toque leve no braço que esqueci pendurado na janela do carro, e uns olhos de vendedor de bala e chiclete a bordo de uma cadeira de rodas. Olha-me e diz pássaro na gaiola não canta e eu respondo não, lamenta. E nós dois rimos da súbita dramaturgia nascida do adesivo na lateral do meu carro. E ele diz é isso mesmo. E eu respondo verdade, quem está encarcerado não canta. E ele diz só dois cantaram. Eu pergunto quem? e desconfio entre parênteses que a origem seja bíblica e ele sorri e mesmo sem saber o que penso diz Pedro e Tiago. Eu não sei se já estou acordada, mas que fazer a não ser concordar e acrescentar eles cantavam da forma que se deve. E o homem de olhar manso diz sim, isto é, o Altíssimo. Agora tenho certeza de que já estou acordada, e pergunto-lhe você canta? E ele diz claro, ou você pensa que esta cadeira é minha prisão? Não digo nada porque que poderia eu dizer? e deixo que o sorriso desse nosso encontro escorra até o asfalto e ambos esboçemos uma forma específica de adeus. Se não fosse isso, mulher, não tinha lhe conhecido, e só depois a mão empurra a roda e só então ouço as buzinas, o sinal abriu, o fluxo não para, e eu fecho os olhos porque só pode ser São Paulo distribuindo bênçãos sobre esta cidade cheia de milagre ao rés do chão.