“Sim, é apenas isto que posso te dar. Estas volutas de fumo que se dissolvem no ar tão inescapável da realidade. É apenas isto, e precisas afastar-te de mim se este pouco não encontra sossego nem morada dentro de ti.
É preciso que consigas ver por detrás daquilo que não digo. Por detrás desta prisão que me cerca por todos os lados e me limita o movimento e a própria vontade. E, ao mesmo tempo, que percebas que essa é a prisão que escolho, na liberdade que tenho de me conduzir a mim mesmo. É preciso que vejas por detrás destes olhos que te veem mas que, antes de te verem, veem o reflexo de meu rosto no espelho embaçado do banheiro. Espalho a palma da minha mão sobre ele, mas as gotas líquidas condensam-se outra vez, turvando a visão do que sou e do que quero. Como posso oferecer-te o que não vejo.
Agora, à distância, olho-te na pele de lembrança em minha mão. Sinto o teu olhar sobre mim e o que posso é dar-te as costas para impedir que vejas o fundo dessas pequenas indelicadezas que te magoam a alma.
Esta é a medida que me é possível. Tens razão quando me olhas manhã cedo e vês dentro dos meus olhos a impossibilidade desse pensamento que te prometo. Assim que me afasto, afasta-se a sensação de completude que resulta dos nossos corpos num mesmo espaço. Afasta-se, engolida pelo cotidiano, a impressão que a alma tenta guardar mas não consegue. Há gente demais na minha vida.
Não penses que não gostaria. Que não inverteria a ordem para começar outra vez e ser diferente o que só consegui ser igual. Mas não alimentes esperanças de que esse que não me habita te alcance como queres ser alcançada. Melhor será que te desfaças da minha imagem, ou pelo menos que a guardes em lugar que não te açoite o coração que me ofereces palmo a palmo.
Não me esperes, não me aguardes, não queiras que dê passos que não conseguirei depois sustentar sozinho. Ainda a minha alma não está pronta, e nem meu coração preparado. É longo o caminho à minha frente, e daqui de onde estou antecipo as encruzilhadas onde pararei como paro nesta em que me encontro. Não vejo os caminhos, apenas a confusão em que me lança a vida a cada amanhecer. Eu só queria viver tranquilo.
Guarda, isso sim, o meu traço na tua pele. Único lugar onde consegui deixar a marca de tudo o que queria poder te dar. E, ao mesmo tempo, o teu lugar visível mais extenso, e ainda assim onde as marcas não são eternidades. Não me faças entrar nas profundezas dessa alma que tens e temo.
E, ao mesmo tempo, como dizer-te que me deixes? Como dizer-te, assim, com todas as letras e espaços entre elas, que te vás e retires da minha vida essa leveza e essa entrega que se aproxima quando tu te aproximas? Esse instante cristalino de riso em que parece que o mundo respirou aliviado?
Não sei dos caminhos do amor, e receio-os a todos. As maçãs que crescem em mim acostumaram-se a despedir-se da vida antes de serem brotos. Arranco-as sem um gesto de lábios assim que ameaçam amadurecer. Metade de mim preferiria uma árvore sem frutos. A outra metade dilui-se num sonho de poder ser o que tanto temo, e oferecer, a essa maçã vermelha e tenra, o ar e a chuva que ela merece e precisa.
Por essa metade, peço-te: fica, ainda, um pouco, à minha espera. Marca um dia, uma hora, se queres, para a despedida e para ires em busca desse que estará junto a ti e abrigará teus sonhos, mas que esse dia se demore, e ainda eu possa ter um pouco disso que me estendes e eu não tenho coragem de colher.”
Imagem: Suzana Siqueira