Dizem que no tempo em que o mundo se formava, existiam no universo três qualidades distintas: as Sensações, os Sentimentos e as Disposições.
As Sensações situavam-se à superfície da pele dos seres: delas derivam, em nós, a sensação de frio ou calor, de lisura ou aspereza, de delicadeza ou brutalidade. Naquele tempo longínquo, as Sensações respiravam livremente, sem os constrangimentos e as dificuldades que nós, seres humanos, trouxemos para a parcela de universo que nos foi reservada.
Os Sentimentos situavam-se poucos centímetros abaixo da pele dos seres. Talvez seja importante saber que a pele, nos seres dos tempos antigos, era a sua mais poderosa força, seu órgão mais sensível, mais perceptível e completo. Por isso, e não por outros motivos, as qualidades dos seres podiam ser observadas e sentidas através da pele. Coisa que nós, seres de hoje, também conseguimos, mas logo calamos em nós essas percepções tão profundas, porque a Obrigação, a Responsabilidade e a Culpa são qualidades que sobrepusemos aos Sentimentos.
Os Sentimentos, assim, viviam logo sob a pele, reino das Sensações. Nutriam-se daquilo que atravessava a então lisa e flexível membrana, recebiam as emanações das Sensações, e irradiavam-nas em forma de luz e algo que entretanto perdeu o nome, por todas as partes de dentro dos seres. Eram alimento da mais pura qualidade, e rebrilhavam na pele em seu caminho de volta. Aquilo que os olhos deixam transbordar são derivações atuais da qualidade Sentimentos. E por isso, quando o Poeta disse, “Esse seu olhar/quando encontra o meu/fala de umas coisas/que eu não posso acreditar”, está realmente acessando essa memória ancestral daquilo que foram os Sentimentos na origem dos seres.
As Disposições vivem em regiões mais profundas. São, sabemos pelos antigos escritos, Sensações e Sentimentos transmutados. Tendem a ser mais lentas, mais firmes, menos abertas, mais silenciosas, talvez menos alegres. Se fosse preciso comparar, poder-se-ia dizer que as Sensações são as mais voláteis, os Sentimentos os mais plásticos e as Disposições as mais persistentes.
As Disposições gostam particularmente de tudo o que já foi esgotado e dissolvido. Desse fim a que tudo chega, resgatam a vida que a tudo subjaz. Observam-na, reviram-na, deglutem-na, amalgamam-na a sua própria matéria, e fazem-na reviver. Queimam como fênix. São os brotos nos campos requeimados. Resgatam do grande caldo amornecido que as Sensações e os Sentimentos produzem, as partículas de pura luz. Às vezes, são infinitamente pequenas, mas não importa, porque em sua evolução as Disposições aprenderam a sobreviver de quase nada. Dentro delas, quase nada é um mundo que não termina.
E as Disposições alegram-se, porque a sua tarefa é a transcendência da morte, e só elas sabem que por trás de tudo está tudo o que há. As Disposições são camaleônicas: tingem-se, vestem-se, despem-se. Reviram todos os seus avessos e ressurgem da maneira que for precisa. Só as Disposições não desistem. E só as Disposições reconhecem a mão do destino. Tem razão aquele que diz delas serem concretas: são pura concretude num mundo que tende à dissolução dos seres.
Lemniscata de luz, símbolo do amor infinito,