P.A.

Dia 1 de fisioterapia. Sala de espera. Um garoto de (imagino) seus 17 anos está sentado na poltrona à minha esquerda, absorto na revista que lê. Men’s Health. As outras revistas à disposição resumem-se à Boa Forma. Como meus olhos hoje nada fazem a não ser chorar, decido fechá-los e dar-me uma trégua. De vez em quando, espreito o garoto a meu lado. Continua num interesse desmedido pela matéria que lê. Até eu estou ficando interessada.

O garoto, que vou chamar de Kléber porque gosto das coisas que têm nomes, entra para sua sessão. Não resisto a querer saber o que afinal tanto o entretinha. Pego a revista ainda quente. Sua matéria intitula-se P.A. Uma lista de três coisas que todo homem deve saber fazer na sua relação de P.A. Porque é possível, nesta nossa sociedade liberal e liberada, ter relações de P.A. com os outros, e parece haver um código e uns preceitos para que a relação caminhe na direção do êxito. Ou seja: como se dar bem como P.A. Uma espécie de manual de bricolage das relações entre homens e mulheres. Vamos a ele.
Um P.A. é um Pinto Amigo. Não é bem uma pessoa, mas uma parte dela. Essa parte estabelece uma relação (imagino eu que com uma B.A.) em que, ensina a revista, não há compromisso, e onde o desejo, a vontade e a satisfação sexual ocasional são o norte, e o sul e quantos mais pontos cardeais existirem. Das três regras de ouro, guardei duas: 1) não pareça interessar-se apenas pelo sexo, que não pega bem; pergunte sobre o trabalho, sobre seus planos, vá com sede ao pote mas que não pareça ser apenas isso; e 2) caso sua amiga não esteja interessada em sexo numa das suas saídas, mas queira sair pra jantar, bater um papo, não fique chateado: afinal, ela pode estar apaixonada por outro e não ser correspondida, pode estar precisando desabafar… Além de ser um bom P.A., a sua amiga é uma pessoa bacana e você pode ser também um ombro amigo, certo? Certíssimo. Seja bacana e seu amigo lá embaixo receberá o que tanto quer.
Fico me perguntando o que levará o garoto de aprendizado da sua leitura. De que maneiras decidirá relacionar-se com as mulheres (ou os homens) por quem se interessar, o que fará com as “regrinhas de ouro” que acabou de aprender, quais fantasias e expectativas de encontros amorosos irá seu cérebro e seu coração (e seu pinto, claro) delineando. O que fará com essa banalidade toda que a sociedade insiste e consegue impôr, travestindo de libertação e autonomia situações que amarram, encolhem e são fontes potenciais de danos mais longos e largos do que podemos supor.
Por outro lado, penso: haverá diferença entre este tal de P.A. e as amizades coloridas desse tempo que já parece pré-histórico? Acho que sim. Enormes e gritantes. As amizades coloridas aconteciam (e acontecem) entre indivíduos e não entre partes sexuais. Eram um todo de pessoas que se olhavam e reconheciam. E não tinham o prévio estabelecimento de querer ou não querer compromissos. Havia, pelo menos assim me lembro, o compromisso de ser para o outro e de estar para o outro. Os frutos nasciam (ou não) da relação, e não eram dados, nem previstos, nem combinados, antes dela. E duravam o que tinham de durar. Sem receitas. Sem institucionalizações. Sem matérias de revista “how-to-do-it”.
E vejo mais um outro lado, que isto de ter o rosto paralisado faz as coisas assumirem muitos lados: quanta razão tinha Hannah Arendt quando há décadas (aliás, aquelas em que as amizades tinham mais cores que hoje) alertava para a banalidade do mal. Para esse momento histórico em que um ser humano decide abdicar da sua condição de ser humano e passa a outra categoria, porque deixa de pensar, porque se acovarda, porque deixa de se colocar diante das situações da vida e do mundo nessa forma que os seres que se erguem assumem no mundo: de pé, conscientes das rédeas que o destino descansa em nossas mãos. E o pinto, onde for seu lugar.

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