Para quem costuma olhar para as línguas latinas com mais familiaridade do que para quaisquer outras, encontrar uma língua a meio caminho entre o norte da Escócia e a Islândia, falada por 47000 pessoas, espalhadas por povoados que podem ter entre 20 e 150 pessoas, é um evento que marca o dia. A culpa, se é que uma coisa dessas é fruto de alguma culpa, foi a peça de Robert Wilson que o SESC tem feito o favor de colocar à nossa mão. “A dama do mar”, na adaptação de Susan Sontag para a peça do norueguês Ibsen, provocou-me, entre anteontem que a assisti e hoje, que tenho tempo de pensar nela, o desejo de saber mais. Provavelmente porque a encenação impactante ficou alojada dentro do meu cérebro e precisava de expansão.
Por isso, fui à procura da lenda da mulher-foca que teve a sua pele roubada e ficou aprisionada em terra. Para os três, Wilson, Sontag e Ibsen, esse é o ponto nevrálgico, que os faz aos três incursionar pelos labirintos metafísicos e simbólicos dos elementos. Seria o mundo humano imperfeito porque se afeiçoou à terra em vez de ter ficado no mar, lugar de onde veio e talvez devesse nunca ter saído?
A lenda nasce (e vive) em Mikladalur, um povoado minúsculo de uma ilha que já se tornou o meu desejo de viagem-assim-que-der: Kalsoy. É a ilha mais povoada das dezoito ilhas Faroés, as tais entre a Escócia e a Islândia: 147 habitantes; Mikladalur é um dos seus quatro povoados, e em 2006 contava com 42 pessoas. Do seu percurso histórico e linguístico, sobre o qual acabei de ler sem pretensões de guardar nada a não ser o que soasse interessante, apreendi o norueguês antigo e a Dinamarca, de quem as ilhas são região autônoma de há algumas décadas para cá. Seu nome, que na língua feroesa (língua feroesa: vou repetir isso até anoitecer!) significa “ilhas das ovelhas”, parece dizer quase tudo sobre a sua vegetação e serventia: pastagem para ovelhas. A riqueza, dizem, está no mar, nos peixes. E é do mar que as focas saem, na décima segunda noite, que vem a ser o dia 6 de janeiro, após o por do sol. Com as consequências que se verão.
Mesmo com tão poucas pessoas, a ilha Kalsoy conta com dialetos. Percebe-se, leio, as diferenças entre um povoado e outro, embora todos se entendam quando se encontram e contam as novidades uns aos outros. Os povoados estão ligados por túneis, para os quais um site turístico alerta serem imprescindíveis lanternas. O túnel mais a norte, que liga Mikladalur a Trøllanes, é estreito, frio, úmido e escuro, e tem 2 km de extensão. Atravessa a região de Trøllanes e raramento se vêm veículos no túnel, porque lá só vivem 20 pessoas. Como para essas coisas tudo depende de quem fala, diz o site que as temperaturas são “amenas”: para essas latitudes, “ameno” é algo entre 0 e 11 graus centígrados, o ano todo. A média, 6,7. Segundo o site: verões frescos, inverno suaves.
Nesse anoitecer em que as focas saem do mar, despem as suas peles de foca e divertem-se como humanos (uma orgia, dirá uma das personagens no palco). E quando amanhecem voltam ao mar, e aguardam o próximo ano. Mas, um dia, um dos Mikladalurianos, escondido em uma caverna para ver as focas-gente, encanta-se com uma bela foca-mulher e corre a roubar-lhe a pele. Quando amanhece, a pobre procura sua pele de foca, e desespera-se e pede ao jovem que aparece que lha devolva. Mas ele recusa-se, obstinado como está de que ela seja sua, e ela segue-o até a sua casa (lá, antes, ele já havia escondido, sob chave, a pele roubada). Casaram-se e tiveram filhos, e viveram juntos por muitos e muitos anos. Até que, um dia, o homem esqueceu-se de levar a chave que sempre carregava em seu cinto, e sua mulher pôde abrir o baú onde jazia guardada sua pele de foca. Sem hesitar, vestiu-a e retornou à sua vida e à sua família marítimas. Antes, porém, apagou a lareira e trancou todas as chaves, para que suas crianças terrenas não se machucassem – o fogo e o corte, a lâmpada e a faca. Haja simbologia. Desisto da lenda, quero mantê-la no ponto em que ficou dentro de mim, que não prestei atenção ao seu desenlace (algo terrível, uma maldição de morte que se abate sobre a ilha).
Fico-me com a imagem do mastro a meio do palco, a dividir o mundo em quadrantes, assim como a história de Élida, a personagem principal (“uma potência anfíbia”, diz um dos críticos da peça), se divide entre lenda e realidade, nos quadrantes que a vida lhe oferece. A oferta que ressurge do passado, e coloca em cheque o presente, o mar e a terra, a declaração de liberdade que aprisiona, a neurose para onde todos (aparentemente) caminhamos: a minha vida está agora povoada por mais uma ilha deste planeta, que meus dedos desejam percorrer, onde imagino se escondam as histórias que precisam ser contadas ainda que a primeira vista pareçam não ser nada, e só estejam à espera de quem as invente para que ganhem vida. Um pouco à maneira de Allende, quando se aproxima do arquipélago chileno de Chiloé em “O caderno de Maya”, que acabei de ler estas férias: “donde el océano se come la tierra a mordiscos y el continente se desgrana en islas”.
À esquerda, na fotografia, a ilha Kalsoy.