Hiatos, diz-me Aurélio (Buarque de Holanda) são encontros – de duas vogais, uma no fim de uma sílaba, outra no começo da próxima. Criam-se, penso, a partir de um vazio, de um vácuo, uma falha no tempo comum – uma questão de tonicidade, dir-me-ão alguns, mas é muito mais do que isso. É um pulo no desconhecido, breve e rápido, quase imperceptível. As sílabas sentem-no, mas o nosso falar apressado quase que consegue suprimir a falta. E pensa-se que há som sempre, e o silêncio tênue dos hiatos não se escuta.
Usa-se falar de hiato também na anatomia dos corpos: aqui, o hiato é uma fenda ou abertura no corpo humano, um espaço entre duas realidades da carnadura concreta. E é ainda aplicável a qualquer campo semântico: uma lacuna, um intervalo. De onde vejo, um espaço de tempo dentro do tempo, onde quem sabe se respira melhor, onde quem sabe se vê melhor, onde quem sabe se sente com um sentir mais sentido. Isso, se há espaço para o silêncio, porque seja de som ou forma, um hiato é sempre sempre intervalo, fenda, abertura, vácuo. Quanto mais penso neles, mais eu gosto dos hiatos, espaços vazios imperfeitamente perfeitos. Como se uma perfeição feita de mil pequenas imperfeições – as nossas lacunas e falhas e intervalos e silêncios reunidos e em encontro uns com os outros.
Às vogais que se juntam numa mesma sílaba, unidas visceralmente, dá-se o nome de ditongos. Por vezes crescem, por vezes diminuem. Uma questão de entonação, de sonoridade, de ordem das coisas dentro do mundo próprio da palavra. Cresce-se ao dizer o ditongo que contém a palavra “quando”; e diminui-se (paradoxalmente) ao vocalizar o ditongo presente em “mais”.
A poesia lida de forma livre com os ditongos: cria hiatos para conseguir o tempo e o ritmo certos. Camões assim fez – expandiu ditongos em hiatos, num processo a que tecnicamente se dá o nome de diérese. O poeta clássico, num de seus muitos sonetos, expande a palavra saudade para nos tornar mais palpável a distância que existe entre os olhos de quem ama e o seu objeto de amor. No terceiro verso (veja logo aí embaixo), expande o ditongo da palavra saudade para nos preencher justamente de mais saudade, para que ela seja mais e maior do que parece à primeira e ditongal vista: primeiro, sau-da-de, depois, sa-u-da-de. Uma percepção sutil e fina do tamanho da falta que sente aquele que ama e está apartado do seu amor, em sílabas que só são 10, como deve ser um soneto, porque a saudade recebeu ar dentro dela.
Têm feito os olhos neste apartamento
um mar de saudosa tempestade,
que pode dar saudade à saudade,
sentimentos ao próprio sentimento.
A vida embrenha-se numa sucessão de hiatos e ditongos. Às vezes, espaços que se abrem no vazio, e nos separam em sílabas que se juntam apenas pelo silêncio que se faz entre elas, a supressão do que é comum abrindo espaço ao divino. Outras, espaços que caminham juntos, alicerçados, amalgamados como vogais que não queiram largar-se jamais, mas onde a mão de poeta em cada um de nós escolhe inserir um tempo, um breve segundo de respiração suspensa, um hiato que se esgueira para dentro da cômoda vida dos ditongos, abrindo-a e fazendo-a respirar em liberdade. Porque o mais provável é que a perfeição resida mesmo no que é (ou parece) imperfeito.
O soneto de Camões, na íntegra:
Têm feito os olhos neste apartamento
um mar de saudosa tempestade,
que pode dar saudade à saudade,
sentimentos ao próprio sentimento.
Em dor vai convertido o sofrimento,
em pena convertida a piedade;
a razão tão vencida da vontade
que escravo faz do mal o entendimento.
A língua não alcança o que a alma sente.
E assi, se alguém quiser em algüa hora
saber que cousa é dor não compreendida,
parta-se do seu bem por que experimente
que, antes de se partir, melhor me fora
partir-se do viver para ter vida.
Uma resposta
E o ato pode também servir de hiato, tudo depende da aptidão do ator. Sua ação precisa ser precisa, tem que ter eco no grande cenário, na partitura maior do universo. Aí, nada distoa, tudo se afina em encontros, sejam eles ditongos ou consonantais.
Pronto, alguém mais pode querer entrar nessa brincadeira de escritura sem compromisso em plena tarde de uma quinta!
Obrigada pela oportunidade,mestra.
Beijoca com todo amor e LUZ,
Neca Terra