A cidade nova VIII – a calçada

Eu não devia, mas lavei mais uma vez a calçada. Em parte, porque depois de remover os 4 metros cúbicos de terra e pedra que aterrissaram do caminhão bem na entrada do portão, merecia. A outra parte é Dona S., que faz dias não vejo.
Passei o domingo procurando assunto. Quente, o dia. Quente, eu. Quente, a casa. Achei que saindo pra lavar a calçada Dona S. daria as caras, e o assunto viria com ela. Dito e feito.
Bastou abrir o portão e sair com a mangueira pro sorriso de Dona S. aparecer por detrás das grades dela. Que estão sempre abertas, pra poder entrar e sair rápido, já me disse. “E seu pedreiro não veio de novo nesse sábado, né?”. Dona S. vive atenta. Uma das filhas vem logo atrás, sorriso parecido, olhos tão juntos um do outro que me fazem inclinar a cabeça. E conta que o pai de Dona S. era pedreiro, mas que ela não aprendeu nada, coitada – uma das irmãs sabe pintar, dois irmãos são azulejistas (um bom, o outro um horror), mas ela… nada. E meneia a cabeça, não sei se com dó se com desesperança da figura da mãe. Mas Dona S. interrompe-a, agitando as mãos salpicadas das cores da idade, para me dizer que ela aprendeu direitinho o serviço de servente,  aquele que ninguém dá valor mesmo. Já carregou muitas e muitas carriolas de tijolo pra cá e pra lá, muita areia, muita pedra. A filha tenta continuar a conversa, mas Dona S. muda de assunto. Ri com gosto porque estou descalça e já bastante molhada. E ri mais ainda quando me pergunta porque é que eu não ponho o lixo todos os dias pro lixeiro levar, e nem espera que eu responda: “é que você veio da roça, e lá nem lixeiro tem, não é?”. E ri ri ri ri até dizer chega. E não é com maldade, como alguns podem pensar – não. O que a faz rir é lembrar-se da própria história, e meu papel aqui é só recordá-la de que a vida são histórias muito parecidas, enfileiradas uma atrás da outra, esperando ser vividas com intensidade e entrega. Como ela provavelmente viveu a dela e eu tento viver a minha.
Lá do outro lado da rua, Dona M. espreita a rua da casa dela. Sozinha, viúva há 10 meses, Dona M. não sabe bem o que fazer da vida. Assim que Dona S. volta para sua casa, abre seu portão automático e atravessa a rua com a dificuldade de quem tem uma prótese num joelho e artrose em todas as articulações. Vem lentamente, olhando cada pedra em que pisa, toda arrumada, vestido de flores vermelhas pela altura do joelho, batom rosado e olhos vivos pintados de azul suave. Nem precisa dizer nada: convida-se a entrar e ver como que anda a reforma. Como outros, olha em volta um tanto estarrecida e pergunta como é mesmo que damos conta. Diz que não é de reparar nessas coisas, mas percebe que trocamos o piso daqui, que fechamos aquela porta dali, que levantamos uma parede acolá, que aquele móvel quando for reformado vai ficar uma beleza.
Sentada no que será um dia a sala, conta que, para driblar a solidão depois que o marido se foi, comprou um computador (coisa que em vida o falecido impedira), que usa para falar com as amigas (atividade que em vida o mesmo via apenas com meios olhos), algumas delas colegas de hidroginástica (que quando vivo o marido proibira). É sobretudo para não se sentir sozinha de madrugada, quando acorda e não há ninguém ao seu lado, aquele marido de quem ela tem uma saudade muito específica, e ela não consegue adormecer de novo. Digo-lhe que também eu às vezes não consigo dormir, e ela acena entusiasticamente a cabeça, e diz-me que sim, que ela sabe: “quando acordo, vou logo ver se a sua luzinha lá do meio das caixas tá acesa… fico mais aliviada quando vejo que tem luz, sabe?”. E eu digo-lhe que me chame, que me dê um grito se tiver vontade de conversar – pularei a janela e virei conversar com você, Dona M.!! Seus olhinhos piscam e ela olha-me escandalizada e diz-me baixinho, para que até quem nem passa seja impedido de ouvir: “gritar?! mas eu não grito!”. E me assusta com esse tom peremptório que tende a usar quem já gritou muito, muito na vida, e percebe de repente que talvez não valesse a pena ter exigido tamanho esforço às cordas vocais. E dá-me uma palmadinha no braço, para que eu me deixe de bobagens, e me faz prometer que irei visitá-la, ver os móveis que mandou reformar (depois que o falecido se foi), o exaustor que finalmente comprou (depois que o falecido se foi), o ar condicionado que refresca agora as suas noites (depois que o falecido se foi), os corrimões que finalmente foram instalados, e que o falecido dissera que jamais seriam colocados. Prometo-lhe uma tarde de conversa. Ou madrugada, logo se verá.
Olho para a calçada, enquanto espero que atravesse a rua até sua casa, e vejo que a sarjeta ficou cheia de restos de areia. Neste novo mundo de convenções urbanas, não sei se me cabe a tarefa de limpá-la, lavá-la, varrê-la, dar-lhe sumiço. Penso que sim. Entro em casa para buscar pá e vassoura, mas quando volto a filha de Dona S. (a outra, que mora ao lado esquerdo) já está de mangueira em punho, lavando a rua com uma forma de fúria e obstinação que me fazem recuar instintivamente. Não sei ainda como interpretar essa sanha das minhas vizinhas, até onde devo entender um tanto das suas ações. Melhor varrer e limpar tudo o que tenho dentro – e que não é pouco.

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