De um dia após o outro

Sabe aquela música? Aquela que começa com Hay dias que no sé lo que me pasa…? Quando é assim, durmo muito menos do que o normal, e acordo com uma disposição muito maior do que o costume. Esses dias espreitam-me e às vezes preocupam-me, fazem o mesmo com quem vive ao meu lado, porque são daquele tipo que deixa as redondezas exauridas e, a mim, inevitavelmente insatisfeita. Em dias como esses, o mundo parece muito pequeno e o tempo muito curto.

Por outro lado, é muito nítido ser desses dias que me nascem as ideias que depois se tornam meu alimento durante meses. Mas é um processo cansativo, e frustrante, e hoje eu não estou disposta a passar por todo ele com a sensação de que, por mais que ande, que dirija, que pense, que faça, que procure – não chego lá.

Por isso, cá me vou à escrita, veia de alívio, quem sabe as ideias me escorrem pela ponta dos dedos e retornam com a serenidade com que me proponho a, de vez em quando, viver. O primeiro problema que se apresenta é decidir se quem me galopa são os cavalos do verso, se os da prosa. Todo ano alguém precisa ouvir-me falar sobre a diferença entre prosa e poesia. Gosto desse assunto, que é daqueles aparentemente banais e essencialmente fundamentais. Daqueles que parecem resolver-se em dois minutos, mas não o fazem. É como aquelas pessoas que, de repente, se iluminam sob diferentes luzes: nem as notávamos e, num segundo, porque lhes vimos o que não lhes tínhamos visto, invadem-nos pelos sentidos e encantam-nos longo tempo. Pensávamos que eram simples, diretas, rasas até, e um dia revolvem-nos por dentro e dizem-nos com todas as letras que o mundo não é, mesmo, tal qual o imaginamos. Antes algo como aquilo que dizem existir entre o céu e a terra.

Nada melhor, para perceber o quanto a diferença entre prosa e poesia não se resolve num instante e pode ser tudo menos banal, do que ter algo a dizer que tanto num quanto noutro enquadramento se desencaixa. Talvez porque existam horas que demandem espaços abertos para o ser verdadeiro, nada de quadros ou caixas que prendam ou limitem, absurdo técnico costurado com as agulhas e as linhas da razão. O que precisa ser dito não cabe perfeito nem numa, nem noutra forma. Como os sentimentos que não se sabe por onde extravasar, e que se ficam nessa consumação que dura o dia todo, semanas até, se quisermos ser honestos conosco mesmos, à espreita por trás de cada árvore, por entre as folhas que decidimos tirar do gramado para clarear a própria superfície. Mas o vento que sopra em volta das casas é indomável, e as folhas voltam para onde estavam mal lhes viramos as costas, nós próprios nos virando e descobrindo que o vento nos trocou o lugar das coisas, e de nós mesmos, sem nem percebermos.

O verso!, penso comigo mesma enquanto olho o papel cheio de traços – é nele que encontrarei socorro… Mas não: também ele revolve ainda mais tudo o que sinto, ainda por cima permite que me ausente de mim mesma e divague pelos ares, e definitivamente esse não é o caminho, porque o que se quer é uma âncora, sei-o bem. As palavras não se permitem tranquilas, o objeto faz-se presente em demasia, obriga a dizer adeus à essência do que realmente se sente, que nada tem a ver, claro, com ele objeto. São contornos a mais em partes tão líquidas do próprio ser.

E tento a prosa. (Esta, aliás, é a sua tentativa.) Mas as arestas das linhas não interrompidas pelas cesuras dos silêncios poéticos tornam-me os sentimentos mais duros do que consigo aguentar. Doem-me como facas que me atravessassem aos poucos e devagar, como personagens bestas de Drummond, e logo volto ao verso, em desabalada e entristecida corrida. Por ele, ao menos, esvazia-se o leito deste rio em que se não estiver atenta me afogo. Mas quando me volto e olho para trás, não reconheço o por onde andei, e assim também me perco, também não consigo refazer o percurso.

Escrever demanda retomar caminhos e procurar a forma exata. Quanto mais se escreve, vivo eu dizendo por aí, melhor se escreve – e é um fato. Mas as coisas estagnadas assim ficam mais evidentes, as nossas estagnações internas com elas, e tudo isso dói.

A substância da língua divide-me em dois braços, um construído de versos, o outro de prosa. Lembro-me dos graus da poesia tal como os queria Pessoa, e tento projetar-me num dos mais elevados, deixando a modéstia de lado, pra ver se é ali que me libero. Mas soa falso, sou eu pensando em vez de sentindo.

Insisto em querer libertar-me sozinha, resisto às prateleiras à minha volta, escavo com vontade só o lado de dentro, relembro a memória e limo as suas falhas e os seus vazios. É uma sorte que o dia se acabe, e que com a sua luz mortiça se presentifiquem as necessidades da manhã, que se aproxima e promete. Amanhã, imagino talvez, saberei lo que me pasa, sem que precise por favor nem abrir o meu Neruda e nem apagar o sol.

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