A cidade nova XIII – o cemitério

Cemitérios são lugares calmos e sossegados, silenciosos; ninguém incomoda ninguém, ninguém pergunta nada, não tem lágrima que se estranhe. Tenho um cemitério a duas quadras de casa – centro da cidade, cemitério que nem é bonito de se dar nota. Mas tem aqueles ingredientes: sossego, calma, silêncio e solidão. Que é coisa de que se precisa, e por isso passeio por lá com frequência.

Chego hoje e seu Isidro me cumprimenta. Acho que se acostumou  com a minha presença. Descubro que trabalha há anos por lá, tantos que perdeu a conta, limpando e lavando o que precisa ser lavado, pondo e tirando terra de covas. É de poucas, quase nenhuma, palavras, mas veio me perguntar hoje o que é que eu tinha perdido por lá, que tanto aparecia. Disse-lhe que não tinha perdido, mas achado: o sossego, a calma, a solidão e a sombra fresca. Olhou-me nos olhos, abanou a cabeça, retomou a enxada que deixara a um canto e desejou-me um bom dia. Seu Isidro tem um par de olhos cor de mel claro, com um vidrado que os faz brilhar. Olhos estranhos, que se fecham assim que encontram outros. Decidi não ir atrás dele. Fui atrás da estátua que há semanas quero fotografar.


As alamedas são cheias de murtas antigas. Troncos retorcidos, folhas miúdas, a um lado e ao outro. As mais antigas estão na alameda central, fazendo companhia às famílias mais tradicionais da cidade, quando ainda existia espaço para jazigos. Espremem-se os mortos uns ao lado dos outros, sem queixas, sem lamúrias, quietos e parados debaixo da terra. Tudo ladrilhado à flor da terra, num puzzle que se esqueceu de olhar o todo e parece uma colcha de retalhos mal projetada. Ninguém olha o morto alheio quando enterra o próprio. 


Num desses jazigos, todo dia me chama a atenção uma escultura, de longe a mais bonita de todo o cemitério. Já tinha decidido pesquisar-lhe a origem. Valeu a pena o tempo investido hoje.

A escultura foi capa do catálogo da exposição individual do artista que a idealizou, em 1936. Ottone Zorlini. O sexto de sete filhos nascidos em Treviso. Ottone nasceu no fim do século XIX e mudou-se pra Gênova na década de vinte. Menos de 10 anos depois, já estava em São Paulo, com seus instrumentos de escultor a tiracolo. Tornou-se amigo de Volpi, de Mário Zanini. E de uma porção de outros nomes que a mim, leiga por completo, não me dizem nada.

É a sua obra, a escultura que tem me seduzido. Fico sentada à sua frente durante horas, ora de um lado, ora de outro. Como cemitério não é museu (acho), posso encostar a mão em qualquer lugar que me apeteça. Assim os detalhes entram em mim pelos poros sem olhos. As mãos, os pés, as superfícies envelhecidas e duras. Riem-se, aqui em casa, quando tento sair de fininho, não consigo, e acabo confessando que vou ao cemitério. Vou em busca dessa frieza dolorida fustigada pelo tempo.


Mas no fundo são os sonhos enterrados que me chamam para esse lugar, a sensação da vida que chega ao fim, as fotos sépia envelhecidas nas pequenas molduras pregadas às lápides, o parto ao contrário, a viagem de volta. Como as flores de plástico, que não morrem, também permanecem as saudades, coladas às pedras e aos azulejos.


É triste ver os cortejos saindo do velório ao lado, avançando em medidos passos lentíssimos pelas alamedas sombreadas, um ritual tão antigo que esquecemos porque não passa ao nosso lado. Mas o tempo, aqui, tem outro ritmo. O de seu Isidro, que passa e acena com a cabeça, ocupadas ambas as mãos  com o carrinho cheio de terra de cova. O cemitério se enche de pessoas que atravessam a alameda central para chegar à rua de cima – entram dum lado, saem do outro, pura conveniência ditada pela pressa. Nem reparam no que está. Cemitério é lugar de onde se foge, ou por onde se passa de sentidos fechados.














































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