Como tendo a escrever melhor em meio ao silêncio, gostava de ficar nesse laboratório quando já não tinha ninguém, apenas os restos da vida de alguém e eu, a sós. E como gosto de ler em voz alta, para sentir como soam os sons que juntei numa linha que normalmente segue a do sentimento que atinge o pensar, descobri que essa era a situação em que podia fazê-lo sem que me achassem talvez estranha.
Os pequenos textos que foram saindo de mim nessas ocasiões não valem, muitos deles, a tinta que os escreveu. Como raramente tenho um plano, desses que se seguem à risca para se chegar onde se quer, as palavras pedem pra sair (ou saem sem pedir) e meus portões cedem com muita facilidade. Às vezes, nem mais gonzos têm: estão caídos no chão e deixam as palavras soltas, saídas. Há quem tente soprar-lhes para que voltem, para que demorem, para que se refaçam e levem em si apenas aquilo que pode ser dito. Mas eu não costumo ajudar nenhum portão a colocar-se de volta em seu lugar, com a tranca corrida. Talvez devesse, de vez em quando. E talvez, dessa forma, esses textos produzidos, em meio a ossadas sem certidão, tivessem mais qualidade do que de fato têm.
Ainda assim, vejo bem, textos antigos ajudam a observação dos próprios caminhos, anos passados. Ajudam a discernir, por entre tantos pedidos de socorro que percebo por trás desses versos, a razão real de querer estar ali, entre restos e sobras e espantos. Essa a sensação desse texto, o da laringe, agora revisitado.
“Há uma encruzilhada que se situa na base da minha garganta e observa com seu olho mudo as pessoas e as coisas a quem quero bem. Essa encruzilhada chama-se laringe e eu tenho uma sua semelhante entre as minhas duas mãos. Essas coisas e pessoas que toda laringe observa, a umas quere-as mais perto, porque há muita poeira e ruído, às vezes luz em demasia, e não se consegue ver de que tamanho é cada uma. A outras, dá-lhes a mão ou aceita a que encontra estendida, porque é com elas que quer atravessar a porta do destino. E outras vão se aproximando (outras portas, outras pessoas, outras coisas), fazendo esse olho em minha garganta estremecer, sussurrar pedindo ajuda ao canal de ar que vive pulsando logo atrás dela, mas que nesse momento insiste em fechar-se assim que ela se contorce nesse estertor. Minha encruzilhada sabe informar-me quando alguém assim atravessa o meu caminho. Pensar a própria anatomia como se toda ela se erguesse com vida própria e fizesse o que o bom senso dita, resiste-me a ver a humanidade toda igual e amarfanhada no mesmo destino sem sentido e sem direção. Cada osso que manuseio, cada pedaço deste corpo que me entregam para que o disseque, aproxima-me da minha própria humanidade e devolve-me a certeza de que toda laringe, pulsando ou inerte, fala.”