A meio da Marginal

a propósito da apresentação de “Os três fios de ouro do cabelo do diabo” pelo 8º B da Escola Rudolf Steiner
Paro a meio da Marginal porque preciso escrever. 
Desci a Rebouças torcendo para que os sinais fechassem e se mantivessem fechados, para poder agarrar-me a estes remos que são a caneta e o papel num dia como hoje, de naufrágio. Quero que as palavras se condensem à minha volta, e que ainda nem pensamento fluam no instante em que são sopradas e eu as ouço. Este meu naufrágio não é de chuva, mas de lágrimas. Do tipo que rega e frutifica, não do que resseca e esteriliza. Nem sempre as lágrimas lavam a alma. Às vezes tornam-na mais porosa, em outras são muros impermeáveis. Estas, de hoje, são do tipo que abre os espaços da alma para que ela seja mais.
Retomo a marcha e perco o caminho. Preciso do retorno. Encontro-o, e perco-me de novo. Vim parar, sem saber bem como, na Raposo. O que afinal é uma sorte, porque o trânsito está de tal forma lento que posso escrever à vontade. Tudo vale a pena. 
E tudo de qualquer forma valeria, porque as almas que se esboçam aqui à minha volta não são pequenas. Estão ainda presentes, esses seres flutuantes, ao meu lado. Vestiram-se de outras, há poucas horas, em cima de um palco. Vestiram-se com as palavras que eu mesma lhes escolhi, e que subitamente ganharam o espaço e o tempo, e se construíram dentro de mim mais sonoridades do que antes. Um alumbramento.
Carro parado outra vez. Agora sob a chuva miúda que se infiltra pelos poros da cidade. Fecho os olhos e repasso a névoa das cortinas que se abriram e fecharam às vezes árvores, às vezes colunas, às vezes fundo, às vezes frente. Sinto o toque das luzes e seus portais. Atravessam-me os ouvidos as cores, as texturas, o toque na pele das minhas mãos, por dentro dela, como se a minha própria forma fosse tornada possível na ação dos outros à minha frente. Um remo lento que passa ao fundo. A consistência do tempo dosada com sabedoria. Um rio que corre para ambos os lados. A mente inquieta esmagando o solo. Quantos anos têm, estes seres, que avançam pelos caminhos do tempo sem se atropelarem nem tropeçarem? Quantos anos têm, estes seres, que num olhar dizem o que está por trás das palavras que escrevi? Quantos anos têm, estes seres, que conheci outro dia e agora fazem parte de mim?
A tudo isso que me ofertam, nestas horas em que estivemos uns diante dos outros, uns virados para os outros, uns por dentro dos outros, eu dou o nome de felicidade. Nenhuma das sombras do mundo tem o poder de escurecer a luz por eles criada. O que mais, além de ser grata?

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