Estou grávida de palavras. Não sei o que faço com todas elas, parece que se paralisam dentro de mim. Não sei o que, mas sei o porquê: assim que lhes dou passagem, mortalizam-se. Absorvem a presença do ar que lhes dou ao oferecer os campos da luz terrestre, respiram a consistência do papel em que as escrevo, iniciam o seu processo de morte. O que farão em vida, as estradas por onde viajarão, as paisagens que visitarão, depende dos outros mais do que de mim. Abro-lhes as mãos para que lhes brotem asas e voem. Mas algumas sei que ficarão retidas. Tornadas silêncios em suas formas dispostas ao mundo do som.
A essas, sinto-lhes a dor. Como se fosse minha. Talvez por isso, talvez por querer poupá-las, eu me demore a resgatá-las de seu estado de dicionário, e deixá-las que se encostem a mim durante a noite. O estado de dicionário é um estado sereno e preservado, o cosmos onde as palavras vivem desencarnadas. Mas elas escapam porque sabem o caminho até mim, e observam-me silenciosa enquanto durmo e as sonho. Mesmo percebendo-lhes a espera, deixo-as quietas. Como se isso pudesse evitar-lhes o sofrimento. Sei que estão aqui quando acordo, e por isso demoro a abrir os olhos, porque não quero que desapareçam e ao mesmo tempo sei que o devem fazer. Precisam, porque assim que vêm que as vemos, as palavras tomam corpo. E estas, que desconfio não encontrarão morada segura, tomam um corpo transparente. Tornam-se difíceis de reencontrar. Não quero que nasçam prematuras, deixo-as à vontade. A meio do frio da madrugada, escondem-se debaixo do meu cobertor, enlaçam-se ao meu corpo que dorme e quase quase se tornam meus músculos, meu sangue, meu coração, nesse bater compassado de relógio de sala. Peço-lhes silêncio quando acordo. E elas retornam de onde vieram, deixando-me cheia de palavras não ditas. Ficam aqui, deste lado direito do meu rosto, em solidária paralisia.
Mas toda gestação chega a termo. E parece que me chamam, do lado de fora, para que nasça junto com as palavras que gesto. Porque embora gestante, estou também gestanda. Faço nascer e nasço ao mesmo tempo. Não tenho outro remédio a não ser deixar que as palavras se estendam como tapetes, que tomem as estradas e se vão, que se alinhavem aos caminhos para que os homens possam passar com mais certeza das coisas suaves. Espero que, ao pisá-las, saibam o que fazem. Que lhes percebam a presença frágil. Que não lhes provoquem espinhos. Que cuidem da sua cicatrização se forem feridas. Palavras são como pessoas, séculos de incapacidades sobre a pele, camadas e camadas de pequenos danos eternizados. Quando tratadas, quando cuidadas, tornam-se mais resistentes. Desenvolvem resiliência. Recuperam-se com quase nenhuma sequela. Mas é preciso cuidado, e cuidado é coisa que nossos dias carecem.