O melhor de tudo é quando alguém nos inspira. Quando alguém se insinua e nos provoca. Quando alguém nos seduz e incendeia.
O texto abaixo é fruto de uma inspirada provocação sedutora assim. Ganhei-a hoje pela manhã (a inspiração), resposta a uma que mandei, que nem se pretendia tanto. Veio na forma de um pequeno filme com música. Vi, ouvi – e troquei de pele, precisei criar palavras que me reconformassem. Se alguém quiser seguir o que me fez começar, ouça e leia em voz alta, com a melodia como referência. (E se depois quiser compartilhar o que sentiu, eu vou agradecer, e meu correspondente também, porque lá de longe ele cria ondas e sincronias onde parecem apenas existir corpos paralisados.)
De Ludovido Einaudi (considere a versão sem a repetição, comece a ler a partir do 3o acorde e use fones se tiver!)
Anatomia – ou das estruturas que compoem os seres vivos
a Palavra, salvação. reelaboração diária, no desenho das letras, no som das palavras, no embate, no gargalo estreito, no despedaço. através da alma, demoradas num dos ventríloquos, translúcidas diante dos olhos fechados. enclausuram-se e abrem espaço e quando se descolam outra vez, é o mundo radiante à minha volta.
a Palavra, proteção. a minha e a alheia. as que me vêm de longe e sobrevoam os mares, as que me vêm de perto sem sobrevoar nada e estão mais longe, inalcançáveis, inacessíveis. respiro, em alívio, pela Palavra viva entre nós, seja qual for. nada outra coisa importa. um som, um ah, um brotar de sentido por entre as coisas escondidas do corpo, aquilo que o ouvido ouve e o coração estremece. e torna sozinho.
a Palavra, mergulho. no levantar das próprias cinzas, a nova Palavra. montanhas e ilhas e minha vida em silêncio. o vento e os mares e as curvas ensurdecem-me, e eis que me devolvo à Palavra. entro pelos caminhos turvos das minhas veias, faço-me água dentro do sangue, transubstancio-me naquela que sou antes disto agora. sou um estado novo.
a Palavra, reencontro. o sentido do estar, agora, sendo. as areias quebradas quando me recolhem. passam por mim e sequer as sinto. sou a perspectiva do alto. as rochas de que sou feita são apesar do vento tempestade vulcão vivo dentro de mim, cercada. e quero fugir fugir fugir fugir nesse teclado piano, cada tecla uma nota, cada nota um som, cada som um tom a mais no meu dia eterno.
a Palavra, refúgio. as Palavras amplas, construídas no interior do oxigênio, pelas mãos que se abrem e abraçam o tejo o mar os açores a praia estendida um cravo a serra alhambra as vielas a lua um quarto de hotel o riso um parto uma avó em terço os livros os dedos uma morte – as eleições de uma vida reunida nas Palavras, ossos construtores, nas Palavras, sustentação de pé dentro do meu ser líquido indestrutível diante da tempestade. rocha em todas as línguas e formas que podem escrever-se as rochas as pedras a beira da loucura à beira da paixão presa inconsolável da fonte que não se cala não se dá não se pede não se fecha não se dobra não se abala não renuncia nunca. a ser Palavra.
(O filme? Era este:
Respostas de 6
Anaaaaaaaaa! Adorei esse texto. Gosto muito de textos escritos dessa maneira, me parece que são só sentimentos, sensações, ás vezes até difíceis se serem expressados em palavras. Parabéns! Grande beijo
Ô Jiddu – valeu! Pareceu certo – não trabalhei em cima desse texto, só quis mesmo os sentimentos, as sensações, e depois achei que "batiam" com a música… Obrigada por comentar!!
"…sou um estado novo", traz ao meu coração a memória do que senti ao ver-te lavada em lágrimas, no teu novo lar, percebendo que o despojar do teu ser de tudo aquilo que já foi, fruto de uma longa caminhada e que finalmente chega a um ponto intermédio em que inspiras com todo o teu ser a nova brisa diante o eterno infinito.
Amor profundo.
… pq adoro, pq admiro, pq me inspira… pq não tenho palavas pra dizer, achei isso ou aquilo. elas são simplesmente ai, como estão… exprimindo a tua relação com elas e através de tu, delas com o mundo!
Obrigada!
Ana, agradecida pela tempestade , pelo filme e pela música!
Clara, Ivette: presenças preciosas. Obrigada!