Tem gente com horror a metades. Metades de frutas. Metades de chocolates. Metades de pães na chapa. Se me pedem “me dá uma metade” a minha tendência é dar tudo. Ou não dar nada. Ninguém merece metades.
E nem eu. Por isso insisto em viver inteiros. Os inteiros me atraem. E as metades me espantam. Passei muitos anos sem saber que existiam aqueles que se conformam com metades. Esses, também me espantam.
Quem procura metades, deixa outras metades abandonadas do lado de lá. Quem queira a vida do lado do inteiro, que venha e bata à porta: abrir-se-á automaticamente, será um susto talvez, mas é que inteiros querem-se inteiros e querem inteiros ao seu redor. Doam-se todos, ou não se doam nada. Abrem-se todos, ou não se abrem nada. É uma via de mão dupla, aliás – a doação precisa de dois lados, a abertura a mesma coisa. E deve ser assunto importante, porque de Pessoa a Gullar, e ainda Clarice e também Montenegro, cada um por inteiro e a seu próprio modo, disseram coisas sobre o assunto.
Não há receitas para ser inteiro. Em compensação, há uma porção de desculpas para se ser metade. Voilá.
O pior talvez é quando a metade não é a do lado esquerdo ou direito, mas a metade de cima. A que boia à superfície, ponta de iceberg à espera do mergulho que constate a enormidade do que vive por baixo. A metade da superfície é coisa pouca, bobagem, veja bem. Tem quem se contente com ela, e mesmo sentindo no estômago a ânsia do mergulho, respira como ser educado para não ser inteiro, e carrega seus todos pedaços de um lado ao outro, de um mar ao outro, de uma mesa à outra. Pedaços são como farrapos, e farrapos são espécimes em estado de esgarçamento. Merecem nossa compreensão, mas raramente a nossa presença. O risco é de contágio.
Pior ainda são as metades que nos arranca a vida. As que perdemos pelo caminho e precisamos voltar, e recolher, tratar, cuidar, alimentar e fazer reviver. As que se furtaram às armadilhas e ficaram combalidas, como velhos voltados da guerra, alucinando nas madrugadas com medo das bombas prestes a explodir aos seus pés. Os pés dessas velhas metades precisam de afeto. De paciência, de ouvido, de afago. E de quem os ajude a andar sobre seus próprios passos, e reencontrar as partes que faltam, as metades tão importantes que as velhas senhoras em carruagens de ouro levaram à sua passagem prometendo o que jamais cumpririam.
Mas ainda as há piores. Há as metades que ficaram à espera. Ficar à espera, para uma metade, é um estado sombrio. Porque a metade que está à espera não sabe que a sua espera é inútil. Que aquilo que a outra metade alcançou, ela jamais alcançará. Essa metade torna-se invisível – e a tal ponto, ao fim de um tempo, que a metade visível se convence ela mesma de que a outra não existe. E, aí sim, é o fim. Porque as metades precisam da visita da luz do sol e do olhar do outro, que são na verdade a mesma coisa, parecendo serem coisas diferentes.
Com a passagem das horas, não há dia que não nasça. Não há semente que não cresça – a não ser aquelas caídas por engano em meio às pedras, e mesmo essas podem recuperar-se, se forem valiosas a ponto de valerem o tempo de voltar e recolhê-las. Porque as coisas inteiras, quando as suas metades se reencontram, espalham calor e conforto ao seu redor, e é de muito conforto e calor que os corações de todos nós precisam.