Aos meus amigos

Um amigo querido aconselhou-me há alguns dias a fazer terapia. Ele não é o primeiro, nem o único, e provavelmente não será o último a dizer-me o mesmo. Rio-me e digo-lhe que não. Mas ele não sabe os motivos da minha negativa. Escrevo para que saiba. Até porque foi enfático na sua recomendação.

Tenho a pretensão (veja bem, meu amigo, que é apenas pretensão) de poder encontrar alicerces em outros lugares. Lugares chamados amigos. Talvez porque a única experiência de terapia na vida ter-me deixado uma impressão estranha, embora eu tivesse 5 ou 6 anos de idade: guardei o nome da psicóloga, que me perseguiu anos através de qualquer sonho que eu tivesse, às vezes metamorfoseada num gorila imenso que me furava impiedosamente com um polegar desproporcional. Há poucos anos, numa reunião de antigos comunistas numa minúscula aldeia portuguesa, a meio do Alentejo que acolheu tantos clandestinos, ouvi-lhe o nome. Encolhi-me aflita, rejuvenescendo até aqueles incômodos 5 ou 6 anos. Gelaram-se-me os pés, e logo, com a inevitabilidade dos encontros marcados, vi-me à sua frente. Elisete deu-me um abraço com toda a força de seus braços, forte, duradouro, como se sentisse intensa felicidade de ter participado da “salvação” daquela que era criança desajustada e agora lhe reaparecia mãe de família, realizada – com o ar de felicidade que os nativos de sagitário sabem tão bem exibir mesmo quando estão emparedados dentro do vazio mais escuro. E eu achei-lhe graça, retribui-lhe o abraço na mesma medida embora os pés continuassem frios. Mas isso não fez com que pensasse seriamente em fazer terapia.
Vejo, pelas experiências que outros compartilham comigo, que é bom. Que faz bem. Que alivia, permite que se vejam de si mesmo lados que sozinho não se enxerga. Que faz crescer. Amadurecer. Mas eu gosto de pensar que conto com meus amigos para isso, aquele tipo de amigo que diz o que sente, aquilo que talvez até não devesse, mas precisa.  Por amor à amizade que nos temos. Diz o que sabe irá magoar, mas que eu preciso ouvir. Alerta. Acolhe. Avisa. Pontua. Assinala. Investiga. Perspectiva. Às vezes impiedosamente tudo isso ao mesmo tempo. E depois alcança-me a manga da própria camisa para que seque e embale as lágrimas, num tempo que é só nosso e não tem medidas.

Imersa numa espécie de solidão nova, tenho amigos que me falam do além, que se personificam em palavras e folhas de papel; amigos que conheço, e reconheço, através da escolha de palavras que fazem, da sua observação do que poderia ser eu própria, assumindo as dores e os nomes de outras pessoas. Esses amigos, camuflados em livros, criam em mim uma relação onde espaço e tempo não existem, por decisão unânime de todos nós. Rodeiam-me de sabedoria tecida em formas simples e complexas, parágrafos que preciso ler e reler, a cada nova vez mais atenta, como se estivesse dentro da aula em que me ensinaram o “close reading”. O ler de perto. O ler dentro. O ler cada palavra, cada letra. 

É dessa forma que penso e olho hoje meus amigos: essa forma de amizade que chamo de “close friending”. Tenho sorte, muita, de ter amigos assim ao redor. Na relação com cada um deles, construo-me a mim mesma nessa escuta próxima, atenta, miúda; vejo-me de outros lados, através de seus olhos que refletem parcelas que as superfícies que uso para me ver não conseguem. São amigos inteligentes: riem-se quando assumo os papeis que conhecem tão bem, quando lanço mão do arsenal de máscaras que eles, argutos,  percebem. Encolhem os ombros e fazem-me saber, sem palavras, que deixe disso.

E é claro que sei que é um jogo de espelhos, mas amigos assim também sabem que é um jogo de espelhos, e que a amizade é uma via em que se vai e se vem. Sabem o valor imenso da advertência amorosa, e não temem lançá-la na minha direção. Ainda que depois tenham de consolar-me e dizer-me que apesar de todas as minhas fraquezas, chatices, resmungos e erros, eu valho a pena. Porque há dias em que é preciso ouvir que se vale a pena, e quando você, meu amigo, me diz que preciso fazer terapia, leio nas suas palavras o pensamento posto amorosamente em mim. E a sua presença assim ao meu lado me faz dormir melhor.

Respostas de 13

  1. Alguns amigos falam mesmo pra gente fazer terapia. E isso é bom.Revela atenção… cuidado com a gente. Mas também é bom quando um amigo vem e diz: Lavou os pratos deixados sobre a pia? É bom ter por perto amigos que nos lembrem que,às vezes, a melhor terapia é lavar pratos.
    Ana, você hoje lavou os pratos?

  2. Normalmente sei sempre o que dizer sobre seus textos.. sobre esse não sei exatamente…você se expôs…como eu também já fiz em alguns textos, embora os meus não sejam arte, o os seus sim…

    Infelizmente não tenho a convicção que vc tem…minha experiência mostra que muitas vezes aquele que está te sugerindo terapia simplesmente não te aceita e te quer mudar, para que você se pasteurize e se torne seus escravo…comigo era assim…

    Prefiro amigos que observam e sorriem

  3. Me permita discordar, terapia eh como educacao. Claro que eh possivel aprender em casa, sem ir a escola, mas se a escola tem um certo efeito pasteurizador, como a terapia, tem um mundo de efeitos liberadores que vem do contato com grupos de alunos e amigos em potencial que nao estariam ao alcance de quem se educa em casa. Da mesma forma, uma boa terapia abre portas que os amigos nao veem. Amigos e terapia, como pais e namorados, nao sao intercambiaveis, sao antes compementares. Nao eh obrigatorio, como nada na vida eh, mas eh enriquecedor e aumenta nossas possibilidades, percepcoes e capacidade. A terapia esta para o nosso lado emocional como a educacao para o lado intelectual, eh cara, dificil e requer investimento material, temporal e afetivo, mas como uma boa educao, nao ha nada que substitua uma boa terapia.

  4. Aninha,

    Penso que a terapia pode realmente surtir bons efeitos, mas a sugetsão dela é que me incomoda… É isso…quem quiser fazer terapia que faça e não mande ninguém fazer. Beijo.

  5. Oi Ana, estive pensando, que é ser normal?

    Normal é aquele Ser que levanta toda manhã feliz e se prepara para seu dia de trabalho ou estudo sem grandes turbulências. Sai pontualmente de casa e enfrenta os desafios do dia com serenidade. É ativo e produtivo o dia todo. Faz pequenas pausas que o recarregam plenamente. Coloca os limites nos momentos e da forma adequada, comunica-se com clareza, sempre. Relaciona-se simpaticamente com seus colegas, carinhosa e profundamente com seus familiares e intensamente com seus amigos. Toma decisões assertivas intuitivamente. Seu pensamento segue uma linha clara e lógica, é equilibradamente criativo, concentra-se sempre naquilo que faz, lê com facilidade e interesse, tem atenção, memória, disciplina e centro. Seu corpo físico é simétrico, flexível, equilibrado e forte, têm todos os sentidos bem desenvolvidos, a energia flui livremente por todos os meridianos, sua aura brilha fluida, em cores variadas, suas emoções são centradas e estáveis. É sempre dono do seu atuar, bem presente. No fim do dia volta para o seu lar, sorridente e satisfeito.

    Feliz como já acordou desfruta de todos os prazeres da vida, pois presente e inteiro, sem emoções que desfoquem o seu sentir, sem tensão que lhe tirem a serenidade, sem déficits que roubem sua atenção, sem desequilíbrios que afastem seus amigos, só pode estar feliz.

    Coitado. Aliás, quem é ele? Onde posso encontrá-lo?

    Todos os outros devem se dirigir a uma terapia! Aqueles que são criativos e se soltam para alcançar aquilo que fica um pouco além, aqueles que demoraram um pouco mais para aprender a ler ou escrever, aqueles onde o pensamento dá saltos mais desordenados, aqueles que se permitem serem eles mesmos, aqueles que esquecem nomes ou outras coisas tão óbvias, aqueles que se atrevem a comer coisas que não consideram saudáveis, ou vez em quando em uma medida diferente do que pede o corpo, aqueles que dão muita risada, ou muito pouca, os que choram, aqueles que acordam no meio da noite, aqueles que querem dormir de manhã, aqueles que acordam sim, mas ficam sérios por um período, aqueles que se sentem tristes, aqueles que de tanta empolgação fazem compras desnecessárias, aqueles que respondem alterados quando sentem raiva, aqueles que se emocionam ao ver um gatinho faminto, aqueles que são tímidos, e os que são espalhafatosos, os arrogantes, os sonhadores, os falantes. Sim: todos que conheço.

    Que tal uma terapia em grupo?

  6. Sou obrigada a discordar, pois a comparação de que a educação esta para o intelecto não me convence – na minha opinião a educação é muito mais abrangente e muito mais importante do que o lado intelectual somente!

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