Ando às voltas com a construção dos caleidociclos de Escher. Comprei os modelos há anos, desencaixotei-os há meses, e agora pairam em cima da minha mesa. Quando me calha a sorte de tempo e espaço para estar com eles, passo mais tempo olhando o que devo recortar e dobrar e colar do que propriamente em ação. Mas penso. Sobretudo penso, e isso me causa um alívio considerável.
Gosto de várias coisas, nessa história geométrica do Escher. Entre elas, a congruência. Congruência deriva de congruere, e está intimamente ligada à nossa ideia de correspondência e concordância (con-cordar, por sinal, é vibrar ao nível do coração).
Os caleidociclos de Escher partem da congruência – essa particularidade/habilidade/capacidade daquilo que tem a mesma essência; que é semelhante; coeso; harmônico; que “cai” (gruere) “junto” (com). Não sei se haverá sensação mais plena do que quando algo ou alguém “cai junto” conosco em algum território. E não cai junto por acaso, sorte ou azar, mas porque quer que assim seja, porque é o que é. E ponto.
Começo por montar uma série de tetraedros idênticos. Tetraedros são poliedros feitos de triângulos equiláteros (ou seja, com ângulos e lados iguais; ou seja, congruentes). Com essa série de tetraedros pronta, crio uma cadeia, fixando a aresta de um na aresta de outro, e assim por diante até tê-los a todos unidos. As congruências de uns, unidas às congruências de outros, penso enquanto espero a cola secar. Minha cadeia está agora comprida o suficiente para colar uma ponta na outra. É o que faço. E eis que, de onde existia apenas uma sucessão de congruências isoladas, surge um círculo tridimensional, que posso girar e girar a partir do centro, contínua e interminavelmente.
Impossível não sorrir.
Penso na importância de cada ângulo de cada triângulo, como esquinas da vida que dobramos para seguir em frente.
Penso no triângulo equilátero que formo no encontro de ângulos e lados congruentes, como instrumentos que respirem num mesmo sopro, homem e mulher no compasso preciso da dança.
Penso na felicidade de unir esses triângulos de vida e libertá-los da existência plana. Oferecer-lhes uma possibilidade segunda. Ampliá-los. Abri-los. Expandi-los. A visão do outro lado que ainda não existia.
E depois, quando junto um ao outro, quando lhes permito mais que serem instantes isolados, quando lhes ofereço a existência como vínculo, quando lhes abro a circularidade da respiração, liberto a forma da sua vida dúplice.
E o mundo muda de fase. Adquire outro novo sentido. Pode girar, a partir de seu centro, e perceber que o começo e o final de tudo são apenas pontos de vista.
Múltiplas dimensões sorriem umas para as outras. Substituem a coerência, que une e cola existências externas, pela congruência, que desperta a comunhão da essência. Congruência liberta o mundo das amarras que o prendem ao chão plano, libertam-nos dessa moeda de duas faces a que chamamos convenção, e que nos aprisiona, estendendo seus longos dedos por todos os caminhos da vida. É preciso abrir a janela ao ar fresco de uma manhã clara, sem medo que o frio invada ou que a chuva molhe. Esfriará e encharcará, porque a essência da vida é viver, e a congruência está em permitir que nos atravesse. O mais é matéria do mesmo: sermos o que já fomos sem nos permitirmos ser aquilo que podemos.