Minha bisavó materna chamava-se Ana. Herdei seu nome. Ana contemplava diariamente o mar diante dos olhos, longe e em volta de tudo. Uma vida inteira nessa casa, diante do espetáculo que é o mar dos Açores. Minha bisavó era devota até mais não poder. Especialmente de Sant’Ana, a quem agradecia o nome. Nessa ilha mais rodeada de mar por todos os lados do que qualquer outra, minha bisavó Ana demorava seus longos olhos no distante horizonte líquido. Para sobreviver é preciso puxar para perto de si a vida eterna dos santos, pensava.
Minha bisavó parecia-se com Nanã Boruquê. Paciente, serena, silenciosa, intempestiva quando necessário, maleável diante das adversidades da vida. E quantas. Uma raiz brotada na terra áspera do Capelo. Remoendo os dias diante do ora espelho d’água, ora onda em fúria. Variava entre os azuis, os verdes e os roxos profundos, dura e forte como a rocha com a qual se construiu sua casa, açoitada pelo vento do destino, consumida pela maresia da ausência, cheirando a mar, a sal, a vento e hortênsias. Minha bisavó profunda e escura como o forno talhado na rocha vulcânica, ardendo na lenha cortada a golpes de machado as lembranças do magma quente do centro da Terra. Minha bisavó tangendo as vacas escarpa acima, voltando levemente o corpo para penetrar o olhar no azul dos caminhos e desse eterno mar, engolindo os barcos tal qual ela o choro e a desgraça.
O quadro de Sant’Ana em seu quarto acompanha a minha vida. Rebrilha como rebrilhou nos ouvidos dos meus antepassados. Como o relógio da entrada, a quem dou corda (quase) toda semana, como minha avó dava, como minha mãe dava, um tique-taque ancestral atravessando os tempos.
Nanã penetra a terra, dilui-se na água, canta nas correntes das fontes subterrâneas. Vive nos manguezais, nos grandes rios caudalosos, nos pântanos, nos lagos, nos estuários, nos deltas. Vive no silêncio das águas que quase parecem não se mover, misturam-se à terra e transmutam-se em barro, esse mesmo barro que nos molda e aos pássaros que Jesus, diz Saramago, moldou um dia na beira do rio, para dizer a Tomé que pare de duvidar, que ele é mesmo o Filho de Deus. Minha avó sabia ler, mas mais ainda sabia contar histórias. Acocorados junto a sua cadeira de balanço, seus 9 filhos escutavam as histórias de marinheiros, de pescadores, de aventureiros que se lançaram à conquista da América para fugir à fome. Uns não voltaram jamais. Como o pai de todos, marido de Ana, meu bisavô António. E Ana persistia nas histórias, sem se deixar abater até quando deixou, seus olhos piscando diante do fogo no forno, a janela escura da noite deixando escapar os suspiros das ondas. O barulho do mar, o morno resfolegar das vacas no andar de baixo e as chamas iluminando as esperanças mesmo quando não as havia mais.
Hoje é dia de Sant’Ana, e a cidade onde escolhi viver celebra a sua padroeira. Imagino minha avó satisfeita com a escolha. A cidade está em festa, o largo da Igreja cheio de barracas e pessoas, em festa diante do que pode ser festa, dando graças por estarem onde estão, e vivas. O meu coração também está em festa, nesta lembrança de Ana, e está em festa também o Terreiro, que logo fará seus ritos em homenagem e gratidão a esse Orixá sagrado chamado Nanã Boruquê.
Os nomes das coisas importam menos do que a maneira como as vivemos. Cada um à sua maneira, seguindo em liberdade o que lhe toca a alma e sem tolher a de ninguém, de coração entregue e mãos abertas, para dar e para receber. Já que só se dá o que se tem, é preciso ter o quanto for possível, para poder também dar o quanto for possível. Seja Sant’Ana, seja Nanã, é dia de agradecer a vida e a longevidade, a capacidade de ser maleável garantindo uma e outra coisa. A sabedoria antiga, o respeito aos mais velhos, o agradecimento, as mãos postas para abençoar de quem soube em criança juntá-las para rezar. Tudo isso reunido, dando-nos um sopro de vida, um alento de esperança. Que seja longo e limpo o caminho que trilhamos, da cor dos olhos da minha avó Ana e do tamanho de seu coração, apertando-se dentro do peito, resistindo aos embates até quando não pôde mais. A receita talvez não nos chegue por ela, mas já nos foi dada por Pessoa: para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Que assim seja e assim permaneçamos.
Respostas de 13
Salve Vó Ana, Vó Chica, Vó Eva, e todas as nossas antigas e ancestrais!
Salve Nanã 🙏🏼
Salve a ancestralidade que vive em cada um(a) de nós!
😃🌈🌹
Muitas histórias, além de nos tocar profundamente, fazem o coração bater mais forte e lágrimas chegar aos olhos. Esta é uma delas. P
Que lindo Ana!
Ana, Ana, minha amiga portuguesa, mais querida. Fui lá… vi sua bisavó, sorrindo juntas: ela e Nanã.
Salve, Salve Sant’Ana!!!
Rogai por nós!!!
Que imagem linda da sua bisavó, de Nanã e da força que se sustenta na contemplação da natureza.
Me lembrou a vó Chica.
Bom dia de Sant,Ana.
lindíssimo texto
Enfim, me senti mais próxima de Sant’Ana, após a leitura desta Ana, tão mais próxima de mim, que tangia vacas e contemplava o horizonte líquido. Escrita e descrita por outra Ana que habita um recanto único do meu coração. Que assim seja…e assim será .
Que bonito Ana ! Lembranças, histórias, emoções, crenças! Não importa o nome que damos mas essa figura de mulher…Mãe, Mestra de força, fé, coragem e tantos Dons a nós oferecer, se nós guiados por Ela ! Obrigada!
Texto lindo e maravilhoso nas palavras tão bem escritas por uma bisneta Ana que herdou o belo nome de sua querida bisavó Ana e da avó de Nosso Senhor Jesus! 🙏
Um Conto e um Poema 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
Lindo e verdadeiro!
Tua escrita me encanta, Ana. Encontro nela uma nostalgia que me toca profundamente, aviva em mim sentimentos que me acompanham desde mais tenra infância. É forte e suave ao mesmo tempo, e carregada de delicadezas que aprecio no mais fundo da minha alma. Um beijo 0
Lindo! Quanta riqueza! Salve Sant’Ana, saluba Nanã