À Karla
Neste domingo, começa tudo dentro do Museu da Língua Portuguesa. Disposta a ver a exposição de Jorge Amado, e já preparada para as mirabolantes instalações do Museu, lá fui. Fomos. Que com companhia tudo é melhor porque divisível. Bahia pura por todas as paredes, um deslumbre de capacidade imaginativa de quem projeta essas exposições temporárias do Museu. As palavras dos quase 5000 personagens criados por Amado por todo lado, datiloscritos animados mostrando a forma e a ordem das correções a cada revisão, um luxo só. Não se esgota nada: são caminhos, pistas, material que instiga e cria vontade de voltar a Pedro Arcanjo, a Santa Bárbara, a Antonio Balbuíno. Até 22 de julho, quem puder que venha.
Mas na verdade verdade, só há um motivo que de fato me faça ir até lá. E é o terceiro andar. Ainda por cima quando posso compartilhar com outra pessoa esses momentos cheios de palavras, quem dera pudesse mais e muito. É começar a projeção e os olhos comicharem. E é a voz do Nachtergale instaurar o convite “penetra surdamente no reino das palavras” e lá me desaguo inteira até o fim da projeção. Toda vez. E olha que esta, salvo erro, é a quinta. Fico com a sensação de que é ali onde mais me pertenço, no meio de um mundo feito palavra, imenso, semântico, sintático, mastigável, onde a vida faz sentido e é maior que si própria e as minhas entranhas todas vibram. Vale a pena o Jorge Amado, é claro que vale – mas o museu inteiro vale, tanto faz o resto, pelo terceiro andar. Salve Nestrovski e Wisnik pela idealização deste presente.
Atravessamos o Parque da Luz, o mais antigo de São Paulo, em direção ao Bom Retiro. Gosto desse bairro multicultural, cheio de cheiros e pessoas tão obviamente distintas umas das outras – judeus, italianos, gregos, coreanos. O Parque está cheio de esculturas, o dia está cheio de sol e as pessoas estão cheias de luz. Atravessamos a rua e chegamos à esquina da Samuel Brenner, bem em frente ao bar onde sentamos pra tomar uma cerveja – torresmo na vitrine, sarapatel com feijão de corda no cardápio do dia pro almoço. Mesas pequenas, todas ocupadas por homens sozinhos.
Samuel está em uma delas. Nacib (sem Gabriela, que ficou no Museu) em outra. Ninguém fala com ninguém, é um prato cheio pra observar a vida alheia ensimesmada. Samuel é baixo, magro, tem dedos longos e finos; usa óculos de armação estreita arredondada e, mesmo à distância, desconfio que seja de ouro. Já passa dos 60. O casaco azul grosso e as costas curvadas denunciam-lhe a ocupação de sentar-se horas a fio, provavelmente atrás de um monóculo de ver diamantes; perdeu tudo para o sócio há uns anos, foi-se para outras bandas e deixou-o só com as contas a pagar. Hoje almoça sozinho, entristecido, pensando que gostaria de estar acompanhado. Suspira na direção da porta entre uma garfada e outra.
Nacib, na mesa ao seu lado, enfarta-se com o sarapatel e a segunda garrafa de cerveja. Olha em volta e sustenta-se sozinho. Rosto vincado, olhos azuis afundados, tem os dedos grossos, as mãos grandes, agarram o garfo como se o fossem engolir. Está sozinho, mas é porque quer. Mandou a mulher embora porque não permitia que fizesse com ela o que quisesse, e Nacib quer da vida tudo. Não quer lhe dar? Vá passear. Estou melhor sozinho do que acompanhado com quem não quer me servir como quero.
Marquinhos chega depois, afobado porque tem compromisso logo a seguir. Engole o prato feito, toma o suco pronto servido no copo, palita o dente a caminho do caixa e desaparece atrás dos braços compridos que usa para equilibrar o corpo. Nem dá tempo de que se lhe observem as mãos.
Suse, a dona do estabelecimento, é mineira da capital, mas já tem 32 anos de São Paulo. De Bom Retiro, pontua com orgulho encostada ao fogão aberto. Seis filhos. Um deles vive em Londres, e ela conta em altos brados que achava que esporte de macho era futebol, e precisou ir lá fora pra descobrir que macho mesmo é outra coisa. Foi ver uma partida de rugby, na fronteira com a Escócia. Entusiasmou-se tanto, mas tanto, que ainda hoje aumenta a voz quando grita “Brandford Bulls!!! “. Aquilo que é jogo de macho, o resto é conversa. Deve ter sido a mais animada da torcida, num jogo a menos de 5 graus negativos. Grita com o marido, o Fernando que fica no caixa, o tempo todo, e quer saber quem que vai levá-la ao jogo do Corinthians. Estamos no bairro da Fiel, é bom lembrar.
São tantas palavras em volta, que saltam dos lábios e dos gestos, que me perco, não quero ir embora, ficaria ali horas observando o entre e sai de clientes. Como essa moça que entra agora, de rosto recém acordado, sozinha, e se senta atrás de mim, pernas de fora de uma saia curta e azul e justa, e pede um prato que eu não conseguiria comer o fim de semana inteiro.
Mas é preciso ir, e deixar para uma outra vez. Volto com a humanidade toda à tona, humanidade feita palavra, feita desenho de sons num papel etéreo que não se deixa prender entre os meus dedos. As pequenas misérias da vida insinuam-se, mas perdem força. Os outros são sempre mais do que nós.