Não sou espírita, como não sou muitas outras coisas que me interessam, e das quais me aproximo de vez em quando. É bom, por vezes, precisar de ajuda e recebê-la, pelos caminhos que for; tanto quanto oferecê-la a quem dela precisa. Nessas trocas, nem sempre iguais, nem sempre equivalentes, há momentos em que é preciso pedir socorro, atitude que se aprende a ter, acho que não se nasce sabendo. O socorro é pedido, e depois é ficar atento, porque ele vem, na forma que escolher. Ontem, por exemplo, a meio de uma palestra no centro espírita que tenho frequentado, soube que há uma grande diferença entre acreditar e ter fé. Mas grande mesmo.
Voltei para casa pensando nisso, o que normalmente, dentro desta minha estrutura imperfeita, resulta ser positivo. No fundo, acreditar não é difícil. Primeiro porque, como se diz, cada um acredita no que quer, o que não deve incorrer em grandes prejuízos para ninguém. Há quem acredite em vida extraterrestre, em reencarnação, em comunicação entre espécies, em gnomos e fadas. Escolhe-se no que se acredita. Seja da boca pra fora ou da boca pra dentro, acreditar não demanda muito mais do que observar e anuir, consentir, concordar. Quase que uma atividade passiva. Acreditar nos outros: fácil, desde que não criemos expectativas que eles não possam atender e nem imagens a que não possam corresponder. E, assim como se acredita, é fácil desacreditar. Fácil e rápido.
Já a fé é feita de material distinto. A fé implica em viver conforme aquilo em que se acredita. É ação, a fé. Decisão. Compromisso. Pode-se acreditar, mas não ter fé. Pode-se acreditar, mas não se conduzir conforme aquilo em que se acredita. Pode-se ter fé na vida extraplanetária, mas não considerar, no corriqueiro dia a dia, que há gente diferente da gente pululando por essas galáxias afora, e agir consoante o que se considera, conduzindo os próprios passos a partir do que eles podem impactar essa vida na qual se acredita – e se tem fé. Pode-se ter fé na reencarnação, mas não se conduzir de acordo com os pressupostos (dizia o palestrante, que se apresentou apenas como Paulo) que a reencarnação considera – pode-se fazer aos outros o que não se gosta que façam a si, pode-se desprezar o preceito fundamental da fraternidade, aquele que nos une a todos e permite que sintamos as dores alheias como se fossem as nossas próprias, esquecendo de fazer o que estiver ao alcance para reduzi-las ou aplacá-las. Pode-se acreditar na comunicação entre as espécies (e o assunto está fresco porque terminei de ler o livro da Sheila Waligora, “Eu falo, tu falas, eles falam…”), mas viver sem que esse acreditar nos faça agir e viver considerando e evitando aquilo que as magoa, que as insulta, que as agride, que as diminui na sua condição de seres viventes. E nas formas mais simples: posso acreditar que meu cachorro me entende quando falo serena com ele, mas esqueço-me e dou-lhe um grito quando ele pula em cima de mim.
Claro que ter fé é mil vezes mais difícil, mas muito mais, do que acreditar. Talvez porque ter fé seja, antes de qualquer coisa, compromisso, e nós tenhamos tanta, mas tanta dificuldade de nos compromissarmos, de abdicarmos de nós mesmos em função de outro. A fé num outro que demanda olhar, admirar, acompanhar e ser-lhe presente. Para mim (porque não há como generalizar) a fé no outro, nesse outro em que acredito porque está bem diante de mim e existe, e palpita, e me reconhece, demanda ver-lhe a parcela luz, a parcela divina que antecede a sua própria existência. Demanda acreditar que antes de tudo é matéria de irradiação luminosa, e demanda agir consoante o que acredito. Por isso, não posso barrar-lhe caminhos, não posso empedrar sua estrada, não posso podar os seus galhos nem quebrar-lhe os seus membros. O que posso é estar aqui onde estou, que aqui me encontrará quando lhe for necessário.
Imagem: Antonieta Miranda
Respostas de 14
Sim,queridAna,claro que sim! E vale lembrar de ontem que a fé corresponde à fidelidade… e me ocorre aqui uma outra imagem. A crença é a semente que, plantada no solo fértil da correção de si mesmo, pode germinar e abrir-se em flor em forma de fé. Assim,cultivada, nascida e amada, esta fé cresce e se fortalece, nos transformando numa pessoa melhor, cada vez mais fiel a este nosso novo ser.
Como é bom estar neste plantio ao teu lado!
Beijos e boa noite, com toda LUZ!]
Love,
Neca Terra
Pois penso que é possível ter fé e, de vez em quando, desacreditar sem perdê-la… e da flor da Neca, então, cai uma folha, mas a planta segue… ou há uma poda, que até a fortalece.
Claro, se muita a perda de folhas, ou se a perda é das essenciais, a planta pode morrer.
oi Ana! Voce leu!!! Fico curiosa de saber o que uma escritora tao talentosa achou deste livro meu escrito de forma tao simples e direta… sem rodeios e tambem sem tanta arte…
e depois concordo em genero , numero e grau com o que vc manifesta sobre acreditar e ter fe!
Como sempre, voce expressou de uma forma brilhante.
bjks
Ana, obrigada. É sempre um alivio para mim ler palavras escolhidas por você.
Beijos e abraços cheios de saudade,
Luísa
Vocês ficam me dando ideias e eu fico querendo pensar mais… Se a fé é a flor aberta do crer, as folhas seriam…? E as essenciais?
Sheila! Que bom que vc leu. Gostei do teu livro, como você mesma disse – a simplicidade e a assertividade (que parecem suas mesmo!). Recomendo! Beijo grande.
Alívio é saber que vc as lê! E as suas? Cadê? Saudades das suas associações tão ricas!
Obrigada por este socorro que veio em hora perfeita sem que eu pedisse…
Texto digno de Lispector…
Epifania
Beijos, cici
eu tenho fé em ti
beijinho
Bell
Ana, a fé afia a faca da crença para que a gente aprenda a cortar com delicadeza tudo aquilo que abala a construção da fé em nós mesmos.
Fé é ter confiança em si mesmo, nos momentos nos quais a gente falsamente acredita que não há nada, nem ninguém em que possamos acreditar e confiar.
Fé é alegria de voltar a acreditar e confiar em si mesmo e no mundo, apesar das descrenças alheias que nos são lançadas como se fossem verdades.
Amo-te com crença e fé… Abraço
Querida Ana
Onde vai buscar esse talento para tornar próximo…o que é distante? Pena é (desculpe o desabafo!!!) escrever em brasileiro! Claro, eu compreendo, mas…Sabe, dificulta a leitura a uma pobre cidadã portuguesa que tropeça, por exemplo, na expressão "compromissarmos"…
Beijos
Tia Luiza
Tia querida: considere o brasileiro defeito de uso e não de fabrico! Às vezes a raiz não encontra palavras no fundo e usa as aéreas, que alimentam as folhas! Beijos e saudades.
Tia, no Brasil há o ditado: "Nois trupica mai num cai". Tropeçar no brasileiro nunca deu problemas, são todos muito simpáticos e compreensivos!
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