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Curvar-se

O ato de se curvar, prostrar ou inclinar é comum a todas as religiões. Umas tornam esse ato mais evidente, do ponto de vista físico, mas todas têm gestos que simbolizam esse lugar. Demonstra (é isso que os atos fazem, demonstrar o que as palavras deixam solto) não a submissão, mas a entrega.

Junto com a entrega, esse ato de se curvar diante do sagrado demanda exercitar o olhar sobre as regiões desconhecidas em nós mesmos: esses imensos blocos sombreados, pouco abertos e poderosos a que chamamos “inconsciente”. É uma entrega a uma dimensão que, ao mesmo tempo, nos transcende e é a nossa própria essência e, diante desse sagrado que nos habita, é fácil enganar-se a respeito de si próprio. Talvez porque esse sagrado, ainda mais se afastado do dia a dia e dos problemas da vida comum, nos inspire, eleve, transforme, surpreenda, e revele o inusitado, o sublime, o adiante. Porém, é indispensável, à prática religiosa, aprender a distinguir o que é nosso, e o que é do sagrado em si, e portanto nos compõe, mas não nos pertence por completo. O sagrado e o profano não se confundem – caminham juntos, porque é da sua natureza, e da nossa, a unidade feita de complementares. Mas somos nós que interpretamos tudo o que percebemos, através da nossa incompleta e turbulenta personalidade, e a nossa interpretação nem sempre acerta ou é precisa.

Refletir sobre as nossas interpretações parte da prática e do exercício de autoconhecimento, e é fundamental à vida religiosa. Perceber as próprias ações (sobretudo quando das interpretações do sagrado), pressupõe ir além do que percebemos como óbvio e já conhecemos. É preciso, muitas vezes, que alguém ou algo externo a nós provoque essas inquietações, essas dúvidas. Ninguém se mexe do lugar onde está sem que algo impulsione: sem incômodos, raramente se avança. Fica-se no conforto, nas mesmas e gastas certezas de sempre, daquilo que gostamos em nós, que nos conforta, alivia, orgulha. Em termos de religião, que é território de fronteiras tão tênues, é preciso redobrar a atenção, e permitir que o incômodo aconteça (buscá-lo, até mesmo), que lhe demos passagem e o observemos.

Uma perspectiva nada fácil de alcançar, porque o domínio do sagrado é o domínio do indizível. Mas é preciso, para que não caiamos em erros grotescos e tolos, como o de ter certezas onde elas não podem, por definição, existir. O que temos, em termos de sagrado, são pistas – as que recebemos e com muita sorte entendemos, e as que muitos outros, em tantos e tantos inspirados livros, receberam e compartilharam conosco.  Como poderíamos ter certeza de algo que apenas estamos aprendendo a descobrir – a des-cobrir?

A vida religiosa, especialmente quando se deixa permear por fenômenos alheios à realidade sensorial conhecida que nos rodeia, como são as religiões mediúnicas de transe, oferece perigos (e alegrias, é claro) a cada esquina. Interessam-me aqui os perigos; os exemplos do que representam são às dezenas, e nem é preciso citá-los, porque de vez em quando aparecem nos noticiários, mais ou menos escandalosamente apresentados. O que têm em comum? O poder exercido dentro de um campo de certeza, numa dimensão em que o poder não está entre nós, encarnados, muito menos a certeza.

Quando nos curvamos, inclinamos, prostramos – quando “batemos cabeça”, como dizemos na Umbanda, o que fazemos é entregar a regência das nossas existências à sua própria fonte divina. O que fazemos é pedir a orientação necessária, aos nossos ancestrais Orixás, para que não nos percamos por entre as vaidades do mundo; é pedir que possamos agir e ser inspirados para fazer o que é preciso fazer, onde é preciso e com quem, mas com um porquê claro e nítido, que se chama propósito e vai além do desejo pessoal e da pequena vontade.

Os Orixás nos respondem, através dos seus campos naturais. Escutar com correção é a nossa parte. No meio da tempestade, diz o Exu Sr. Cobra Coral, nada escutamos, mesmo que nos gritem. É preciso silêncio, devoção, paz de espírito e temperança. Sem eles, nada se escuta, ainda que se façam mil reverências, ainda que se curvem e se dobrem nossos joelhos, ainda que se escutem conselhos e imaginemos até segui-los.

Vó Chica costuma dizer que a única maneira de saber do valor de uma árvore é através de seus frutos. O que achamos da árvore pouco importa. No desenvolvimento espiritual, os frutos são perceptíveis a cada passo – mas é preciso encontrá-los, identificá-los e compreendê-los corretamente. Escutar, observar, duvidar e prestar atenção. As respostas chegam. Já estão aí. Que tenhamos método, persistência e humildade para nos aproximarmos delas.

 

Foto: Sofia Espanion. Terreiro Pena Vermelha, Festa de Oxalá, 2021.

 

Respostas de 12

  1. Muito inspirador querida Iyá, assim como cada um dos passos dados em nosso Terreiro. Muito amor por você e por nossa Casa.

  2. Obrigada por me ajudar a aprofundar ainda mais minhas reflexões Iyá querida. Penso sempre sobre esse ato, a cada vez que piso no Conga. Muito amor e respeito por esse Terreiro, que hoje é
    a minha casa.

  3. Obrigado Iya. Suas palavras esclarecem e direcionam, mesmo quando o que parece caminho, na verdade, seja parar e com o coração contra o chão, poder escuta-lo. Axé querida!

  4. Lindo e potente texto, Ana!
    Se curvar diante do sagrado, mas não deixar de conversar com nosso humano.
    Partes desse mistério inconsciente que somos e que nos atravessa. E que tb se manifesta nos frutos ou na falta deles.
    Maravilhoso

    1. É no silêncio mais profundo do ser que encontramos nossa essência, esse silêncio vem reverberando em mim desde o primeiro retiro do silêncio. Grata Iyá pelas palavras que me fazem curvar em reverência a tanto aprendizado que venho recebendo dos mentores e guias da casa.

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