Das curvas da estrada

Cada vez que entro no carro e inicio uma viagem, fico pensando que essa história de que a menor distância entre dois pontos é uma reta pode até ser verdade em algum âmbito assim mais formal, mas ao volante eu não posso deixar de agradecer aos projetistas das estradas, por todas as curvas com que nos presenteiam, para que nos surpreendamos de vez em quando. Por muito rápido que chegássemos em qualquer lugar fosse nosso caminho feito de retas, eu ainda preferiria as sinuosidades das estradas menos percorridas, onde imagino que meu destino esteja à espera com muito mais interesse, porque pode brincar de esconder-se e rir-se quando me perco dele. Há viagens que ilustram o fato das curvas nos levarem muitas vezes, e de maneira mais rápida, ao destino que nos cabe.

Há curvas inesperadas, pelas quais não esperávamos, às quais emprestamos medidas erradas e, por isso, exageramos no acelerador. Quando temos alguém ao nosso lado que suavemente nos adverte (“olha lá aquela curva, pisa no freio aí senão já viu…”), menos mal. Mas às vezes estamos sem apoio dentro do carro, ou temos apoios que não se percebem como tal e se ausentam do auxílio ao volante, ou são talvez apoios daquele tipo ineficiente e vago, que ainda por cima depois solta um “bem que eu avisei…”.

A estrada pela qual segui ontem, feita de longos 400 quilômetros, alimentou-me com umas curvas que estou aqui agora tentando digerir. Quarenta anos e um dia depois de woodstock, passei horas ouvindo e conversando com uma das pessoas que me chega diretamente desse tempo e desse lugar – de tantas curvas, ambos quase parecem remotos. Abre-me um sorriso sem grades habitado pela simplicidade de cada uma das suas curvas, generosa e placidamente, possibilitando que eu não seja mera quadrada espectadora nesta conversa construída a dois. Alivia-me da carga de tantos dias de sorrisos cheios de amarras e sentidos vazios.

Ouço, durante horas, sobre os efeitos do sorriso sobre os esfíncteres todos, inclusive o que move o parto, assunto que, bem objetivamente, foi o motivo da viagem. Ina May é uma parteira americana a quem admiro pela capacidade de perseguir uma ideia obstinadamente e não deixá-la escapar e, ao mesmo tempo, manter a paciência e a tranquilidade necessárias às dores inevitáveis, próprias e dos outros, e às curvas agudamente dolorosas. Tudo é simples à sua volta, e para tudo a solução é simples, e começa pelo amor incondicional e irrestrito que lhe rege a vida. Descubro-me conversando com ela sobre coisas que nada têm a ver com os partos sobre os quais viemos falar, sentimentos e situações que também nascem e se desenvolvem, e rompem bolsas, e se apresentam de maneiras invulgares, e se estendem por horas, dias, meses, à revelia das soluções que lhes queiramos encontrar. Ela sorri e diz-me que faça o que acabei de dizer que devo: que me entregue, que não tente afastar a dor-garantia das curvas da estrada, que observe de longe e de perto, e que não me ausente de mim mesma, para não perder o próprio chão. Conselhos que cabem em todas as horas de um trabalho de parto bem acompanhado, assim como cabem num trabalho de vida bem arquitetado. Do alto dos seus muitos anos de vida, ouço-a dizer, com os olhos acordados e serenos, que essa curva em que acabei de me meter me trará paisagens com as quais sequer me arrisco a sonhar. A transparência da sua fala é produto da certeza de que tudo é feito da mesma matéria, e que partos ou vidas ou amores ou crianças ou aulas ou amigos ou vizinhos ou comidas – tudo a mesma substância interna, e em tudo devemos ser os mesmos. Diz-me, com duas palavras simples, que devo sonhar as paisagens que desejo, sem lhes construir ainda assim nenhuma expectativa, para que se concretizem enquanto desejos. É só disso que eu preciso para pavimentar a minha estrada.

Ponho-me a pensar na diferença intrínseca que existe entre desejos e expectativas, e descubro as mais óbvias: que enquanto aqueles se alimentam de sonhos, ao menor deslize sucumbem às expectativas que inadvertidamente construímos em torno deles, com extraordinária rapidez. Desejos habitam o mundo das ideias puras, dos sentimentos nobres; expectativas derrubam-nos dessas alturas celestes e sepultam-nos sob pedras duras e concretas, que se querem realizadas e cristalizadas na matéria.

Perdi alguns trechos de uma das palestras, porque logo me pus a fazer associações daquelas profundas, que fazemos quando conseguimos entrar numa espécie de estado de graça. Ina May fala do poder do sorriso que desfaz a aguda sensação de dor e aumenta a dilatação do colo uterino – essa receita eu sei há anos, mas esta mulher na minha frente, feita de suavidade e experiência, faz-me lembrar das coisas que tão facilmente esquecemos. Sorrir apesar de qualquer coisa é uma delas. Sorrir apesar do coração apertado. Sorrir apesar dos desejos que se vão tornando puro ar, antes de seu desaparecimento definitivo. Sorrir apesar das curvas apertadas, ou de um cenário tão monótono quanto uma reta que se afunda no horizonte.

As curvas da estrada que me trouxeram até o dia de hoje foram de certa forma tortuosas: nevoeiro, cerração, excessivos silêncios nos trechos mais perigosos, daqueles que assustam porque atrás deles há gritos em busca de libertação. Porém (concluo ao dirigir de volta, aproveitando o por do sol magnífico que permeia as águas dos dois rios que cruzo, e que me faz parar durante muito tempo), tivesse a minha vida sido uma reta, dificilmente teria descoberto o que adivinho como futuro. Com as curvas que encontrei e as tantas que conscientemente procurei, mantenho-me ao leme, aproveitando, aqui e ali, essas chances de um vento extra na vela, como este encontro deste domingo, feito do reconhecimento, da sinceridade e da cálida abertura que procuro a cada dia.

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