Das pastas e das malas

Eu não gosto de fazer malas. Por muito que goste de viajar (e eu gosto), fazer malas é sempre um processo angustiante, como se a certeza de não levar o que deveria me atormentasse do começo ao fim, e a grande vontade fosse de não precisar carregar nada mesmo. Já desfazê-las, é uma delícia – voltam desorganizadas e cheias das pequenas bobagens que vou colecionando pelo caminho, porque lá no fundo sempre tenho a intenção de fazer um diário de viagem bem documentado, com todos os tickets de todos os museus e de todos os ônibus e trens que se usaram pra ir de um lugar ao outro, as contas de cada lugar onde comi, arrastando atrás de si as escolhas do cardápio do dia. Ficam um tempo por cima dos móveis, essas lembranças, todas juntinhas num montinho; depois, migram para alguma pasta que aparece do nada, que se junta a outras num outro monte, ao qual se agrega a poeira diária. Diáfana, ia eu acrescentar, mas é redundância sonora demais, e eu hoje acordei concreta, como devem acordar as pessoas que vão viajar e precisam organizar mil pequenos nadas que podem ser urgentes, mas estão longe de serem importantes.

Diário assim planejado eu só consegui concretizar uma vez, depois de uma viagem à Califórnia. Romaria de visita aos muitos parentes de minha mãe (todos emigrados dos Açores para terras americanas, desejosos e esperançosos da possibilidade de se tornarem sobrinhos do tio Sam), a lembrança mais persistente na minha memória ainda é o quase-tombo da minha mãe, desequilibrada na sua enorme mochila ao encarar uma imensa escada rolante no aeroporto – a escada era imensa provavelmente só naquela altura, mas a mochila continuaria hoje enorme, porque realmente era grande. A ajuda que tivemos de um senhor simpático e atencioso, muito simpático e atencioso mesmo, rende-nos até hoje umas tantas gargalhadas. Mas é estranho, convenhamos, que essa seja a primeira e quase única lembrança viva dessa viagem. É por coisas assim que é bom fazer esses diários, tudo fica mais justo.

Hoje estou sem pressa para viajar (os filhos ressentem-se desse meu estado algo letárgico…) e posso ir em busca do diário dessa viagem. Dentre as muitas coisas que parecem desnecessárias e eu guardo, encontra-se esse caderno. Só que é graças a ele que eu posso lembrar-me do museu de cera de São Francisco; do pôr do sol sobre a baía, que me deixou sem fala e sem fôlego; da máquina 2-em-1, de secar e lavar, da tia Francisca, que no espaço de tempo que me levou tomar banho e jantar, lavou toda a roupa de uma viagem pontuada pelo acampamento improvisado na casa de uns e de outros; da primeira vez de um Kentucky Fried Chicken, que até hoje não consigo recuperar em termos de paladar; e a surpresa por tantos homossexuais sentindo-se e agindo livres. Acho que eu tinha 13 ou 14 anos de idade na altura, e Portugal, mesmo democrático e incorporado às nações livres do mundo, não tinha me acostumado a essa sensação diferente.

Preciso recuperar as lembranças de outras viagens. Pensando nisso, e previdente com relação ao futuro que se aproxima ao virar da esquina desta viagem de hoje, lanço da mão da pilha desequilibrante de pastas na prateleira à qual não dediquei muita atenção na arrumação feita. São as pastas das viagens que me acompanham ao longo do ano, e que eu tento não se repitam e se descubram diferentes a cada visita. Não é fácil, porque só o fato de se guardarem em pastas etiquetadas faz com que se imobilizem no tempo, e me contagiem com esse sentimento que a duras penas suporto. A subversão é a melhor medida, e é por isso que, ao abrir a que se denomina a si mesma “Trovadorismo”, dou logo de cara com um poema do Ivan Junqueira… Pelo menos passo a pensar no que poderia eu mesmo estar pensando quando entendi que este poema do nosso contemporâneo e carioca Ivan tinha uma relação assim tão estreita-evidente-possível com algo saído da pena de um galaico-português Nuno Fernandes de Torneol, e isso atapeta a minha fuga do óbvio redundante e da mesmice de todo dia.

Por tudo isso, na viagem desta semana, decidi pôr no carro todas essas pastas-viagens. Ocupam quase metade do porta-malas, entre lembranças de vida e vidas de lembrança. Espero, nesta que suponho ser a última escapada destas férias, dar sentido a esses pequenos não sentidos das minhas pastas. Que, ao voltar, e ao abrir qualquer uma delas, possa encontrar de fato lá dentro o que a etiqueta externa me anuncia, sem ao mesmo tempo negar-me as surpresas. Que não se misturem mais, nas minhas pastas, a objetividade realista com o devaneio romântico, a austeridade parnasiana à audácia decadentista. Que ao abrir a pasta das “Alegrias” seja incontestavelmente alegre seu conteúdo, que a das “Expectativas”, além de se manter escassa e quase vazia, não me deixe a sensação ambígua do gosto amargo do boldo, que a das “Memórias” me alegre com mais de muitas, e que todas elas (alegrias, expectativas e memórias) possam traduzir-me neste semestre que já anuncia o fim do ano.

E as crianças suspiram aliviadas porque parece que, afinal, vamos mesmo partir!

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