Sabe aquele momento em que percebemos que deixamos de prestar atenção a coisas às quais nos dedicamos por longo tempo? E é um susto quando descobrimos que elas nos desabitaram? Normalmente de repente. De repente, vivemos sem elas, quase sem nos darmos conta. Mais do que isso: sobre-vivemos sem elas, o que no mínimo é mais do que apenas viver, e isso considerando que viver seja algo imensamente imenso.
Pois ontem à tardinha, de repente que é como tem de ser, descobri que me desabitei de ouvir algumas coisas. Sentada dentro do carro, parada esperando aquele bendito semáforo novo da General Telles liberar o caminho, fui atingida pelas vozes gravadas num cd que não ouvia há tempo. Não foram as vozes que me desabitaram, nem eu me senti desabitada por elas, mas antes o tempo que se desabitou entre elas serem gravadas e eu deste agora, aqui, ontem, ouvindo-as em estado de espera, sem perceber como é que pode que tanto nos aconteça sem darmos por isso, ou dando por isso um pouco menos do que é a verdade.
Todas as vozes desse cd entoam poemas – são vozes e poemas, feliz duplicação. Sonhos, medos, esperanças, desejos e destino nas cordas vocais que estes poemas escolheram para se tornarem matéria audível, para saírem do éter em que estavam. Podemos enganar-nos, pensar que as vozes os escolheram. Não: as vozes foram chamadas, naquele movimento que perfaz a palavra “vocare”, como os latinos gostavam de “chamar”, antes de se tornar esta nossa “voz”.
Pois assim que percebi minha desabitação dessas vozes, elas voltaram a preencher-me, arrastando consigo todos os dias que separam esse ontem que é hoje daquilo que era quando foram gravadas. Tal é a estranha dimensão do tempo.