Destinos dados

… mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro, brota é depois. (GR)

Facebook, dizia eu hoje a uma amiga, é uma fábrica de neuroses. Nunca se sabe ao certo por que aquela pessoa curtiu aquela sua postagem, ou por que passou por ela ignorando-a. Dentre as pelo menos nove possibilidades, escolhe-se uma, duas, e deduz-se um nunca acabar de motivos para a bendita curtida, ou não curtida. Sobretudo quando a distância é imensa, e separa os olhos dos olhos, criando na sua imprecisão não sonhos, mas fantasmas, essa ferramenta assume o seu lado pactuado com as forças sombrias e invade-nos o dia. Por isso, melhor afastar-se dela, de tempos em tempos, e optar pelo contato que se materialize real, disponível, feito de tato e de afeto.

Porém, justamente essa amiga publica em meu mural um trecho de Guimarães Rosa que me faz levitar para fora da minha infinitamente pequena visão, e dar graças pela existência facebookiana. Desse recorte que ela me oferece, faço eu meu próprio recorte: aquele que abre este texto.Que fala de amor que é destino dado. Destino maior que o miúdo. Um amar inteiriço fatal. Carente de querer. Faceador de surpresas. Amor que primeiro cresce, e “brota é depois”.

É Riobaldo quem fala, esse homem tomado de des-serenidade ao perceber-se movido em amor pelo companheiro Diadorim. Depois do espanto, talvez a vontade de correr ao encontro e o movimento contrário, porque esse amor inteiriço e fatal sente-se também proibido (até onde os olhos de Riobaldo ainda alcançam), amor em des-padrão, amor que arrebata e aparece repentino, e não há garantias, nem salvaguardas, apenas caminho a seguir. Isto, quando se escolhe seguir, sabendo que esse seguir demanda ser pleno e inteiro. Se não, é como ser desleal consigo mesmo. Se não, é como dizer-nos a nós mesmos que a vida pequena e sem relevo, do tamanho do miúdo e atrevendo-se aos destinos ofertados pela metade, é a vida que queremos.

Só mesmo lendo Grandes Sertões para saber os caminhos que percorrem Riobaldo e Diadorim, e por quais palavras, sabor e carne e pedra desse homem feito escritor que é Guimarães. Mas esse instante de desatino perplexo, tão imenso e tão libertador, esse reconhecimento de um sentir maior que o miúdo, é um júbilo que quero levar para o meu adormecer. Seja como forma de transcendência. Seja como instrumento de criar humanidade. Seja para salvar-me os sonhos de acordarem enrijecidos pela covardia do mundo. Ou seja para salvar-me a mim daquilo que, ao saber-se diante de algo maior, atrasa seus passos ou revoga o caminhar. Como uma inadvertida curtida de facebook, é difícil saber o que a palavra alheia, sem o contorno dos olhos nem o calor da pele, realmente diz. Ou, como nas palavras de Riobaldo/Guimarães, “como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário…”.


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