Passei parte da minha tarde de hoje lendo poesia em voz alta, atividade que é de longe uma das que mais me agradam, e que hoje me serviu um tanto de abrigo e outro tanto de desintoxicação. É uma sorte que o que tenho de fazer por ofício me leve a isso muitas vezes. No entanto, acrescentar a essa ação os poemas favoritos resulta numa soma estonteante que me faz soltar um suspiro no final, traduzindo a forte sensação de que tudo vale a pena. Sobretudo porque, no encontro com esses poemas, não há em volta nenhuma alma pequena, e por isso qualquer coisa deixa de ser intolerável.
Justamente: Fernando Pessoa. Por isso o suspiro. Nessas leituras de hoje, lembrei-me de alguns poemas que suscitavam grandes discussões quando eu era pequena e tinha à mesa a minha tia Teresa, com suas ideias revolucionárias pero no mucho, “porque se vierem mexer nas minhas coisas eles que se atrevam, a césar o que é de césar desde que césar não ache que é dele o que é meu”, e o meu tio Zé, que não sendo muito mais revolucionário que ela, tinha um arsenal mais vasto de leituras inflamadas e a sorte de ter podido compreender um tanto de coisas nas mil viagens que já tinha feito. Não se pense que eu não gostava de um ou de outro ou de ambos; apenas depois de anos, participando de conversas parecidas, fui reavaliando as minhas percepções da altura e encontrando-lhes outros significados e sobretudo outros motivos.
Uma dessas discussões girou durante uma época em torno da paixão que outra das minhas tias, Manuela de nome, tinha por Fernando Pessoa, enquanto que ambos os ditos revolucionários se insurgiam, num tempo em que ainda pegava mal o nacionalismo às vezes um tanto ufanista de parte do autor de “Mensagem”. Às suas ideias burguesas de produção artística juntavam-se aqueles poemas que tanto cantam, decantam e clamam pelo Quinto Império, e a pobre da minha tia Manuela, com uma verve bem mais comedida, era soterrada sob os discursos e argumentos dos dois, exaltados contra o tal Portugal que ainda não tinha se cumprido, “que patéticas as ideias desse gajo”.
O que punha fim às discussões era a minha avó avisando que meu avô tinha chegado. Ele, detestava essas invencionices modernistas, a poesia dele mirava-se no máximo num Antero de Quental. Os outros, fugiam apavorados ante a eminência de ter de lhe ouvir algum poema que ele declarava orgulhoso “este, sim, é nacionalista!”, como se isso fosse aos olhos dos demais uma grande virtude e acabasse de uma vez por todas com a discussão.
Assim, na sala, ficávamos minha avó, eu, e às vezes meu tio Fernando, de profissão arquiteto, a vida inteira enrolando indolentemente mechas de cabelo entre os dedos, com o cachimbo que a minha avó execrava tanto quanto a indolência dos dedos – mas aguentava, em nome do que se pretendia a boa convivência entre diferentes, mesmo diante da obviedade de ter de tolerar o intolerável. Foi daqui, do intolerável, que eu parti ali no começo do texto, na tentativa de conseguir lidar com a sensação de intolerável cansaço que se apoderou de mim hoje à tarde, e que eu vim resolver aqui entre os livros, tentando refugiar-me dessa exaustão de mim mesma.
A poesia, escrevo para poder lembrar-me da próxima vez, permite-me o tolerar dos meus lados mais intoleráveis, aqueles que aguento única e exclusivamente porque sei muito bem que me pertencem, mesmo que às vezes tente imaginá-los distantes, ou queimá-los em fogueiras ritualísticas que consigam diminuir um pouco essa sensação de intolerabilidade. Mesmo não desaparecendo, poder subtrair-lhe o raio de ação ou criar-lhe um pouco de distância – às vezes, é um alívio.
Uma boa noite.