Do parto que me faz chegar

Reli uma das minhas últimas crônicas agora à tarde, e lembrei-me da minha prima Inês. Como as lembranças normalmente correm amarradas a um fio que as conecta ao que acontece no presente agora, fui em busca do porquê queria eu resgatá-la aqui nestas páginas.

A Inês foi o primeiro nascimento de quem eu tive realmente consciência. Filha da minha tia mais nova, não me traz nenhuma lembrança especial da gestação em si. A única coisa de que eu me lembro é do seu parto – um despreparo de assustar qualquer um, um medo quase pânico estampado nos olhos, uma despedida à porta do centro cirúrgico de cortar o coração do meu tio aos pedacinhos. Ficamos ele e eu, olhando desajeitados para as unhas das mãos, que ambos roíamos – hábito nada saudável e que cola em nós como piche, mas que naquele momento nos manteve ocupados até começarmos a ouvir os gritos da minha tia. Ficaram-me gravados para todo o sempre. Gravados da maneira como eu os interpretei, e não exatamente como eles deveriam soar se tivessem sido recolhidos numa então fita K7. O que a minha memória guardou foi a descoberta da chave do mistério, das portas abertas para o além, para o sobrenatural feito som naqueles gritos escandalizados, que se espraiavam pelos corredores, subiam e desciam escadas, se infiltravam em todos os recantos, como se transportassem uma alma em busca desesperada pela porta de entrada neste mundo.

Contou-me ela depois o quanto lhe foi horrível, sofrido, terrível – tanto, que nunca mais sequer cogitou ter outro filho. Eu confesso não ter acreditado em uma palavra do que me disse: achei muito mais importante o que eu tinha ouvido. O dia 31 de agosto ficou marcado, e por causa disso a Inês gosta até muito de mim, porque é o único aniversário de primo meu que eu nunca esqueço. Dos gritos, nunca falei a ninguém, e é curioso que, logo hoje, eles apareçam aqui. Mesmo eu já sabendo disso que conto, porque tenho alguém ao meu lado achando engraçado que só agora, sete partos próprios passados, esteja eu tecendo considerações a respeito dos gritos do parto, como se me fossem coisas de repente surpreendentes e desconhecidas…

Do parto da Inês ao próximo que me marcou, do Leonardo, vai uma fiada de anos. O Leonardo é filho da Laís, minha primeira amiga em terras brasileiras. Carioca e médica, a Laís é de um desbocado saudável que nos faz rir de um dia ao outro. Dividi com ela algumas dores que só ela sabe, e com ela descobri os primeiros livros que me plantaram na cabeça a ideia fixa de ter um filho. Muito antes de engravidar, esse filho já tinha nome e maneira de nascer – e sobretudo tinha maneiras de não nascer, e uma delas era o grito, que eu não queria, porque não tinha entendido. Leboyer encantou-me tanto com a penumbra, a suavidade e o silêncio possíveis no momento de nascer, que o grito da minha tia ficou submerso naquelas fotos do livro desse obstetra famoso, a preto e branco e meia luz, de um recém nascido de olhos lucidamente abertos. Esse primeiro parto, anos depois, e os outros que se lhe seguiram, primaram pelo grito que eu não segurei – não porque quisesse soltá-lo, mas porque ele se soltou a si próprio, tarefa de ser autônomo que é, porque não é nosso.

Filhos chegaram e partiram, meus e de outros. Cada um a que eu tenho o privilégio de acompanhar, seja na ida, seja na vinda, instala a meu lado a mesma impressão sobrenatural do grito da minha tia. Hoje consigo avançar na percepção, dar-lhe contornos de coisa terrena, tentativa frágil e imperfeita de transformar em palavras e imagens algo que de antemão eu sei não ser verbalizável. Acho que fico mais tranquila assim; é provável que haja muitas coisas que escondo atrás das cortinas das minhas palavras.

Nessa vontade de conseguir comunicar e transmitir o que sinto, algumas hipóteses se levantam – uma delas, hoje, 14 de julho, permaneceu muito forte e luminosa diante de mim o dia inteiro. Tanto que, embora hoje já não seja dia 14 no calendário, para mim ainda o é, e demorará a passar pelo menos mais uns três dias.

A França inteira deve estar em festa, neste 14 de julho – o feriado que celebra os ideais que fizeram a Bastilha ser rendida deixaram-nos de presente o “dia mundial da liberdade”. João Gabriel escolheu justamente este dia para chegar – ou para partir, e assim chego à ideia que rondou o meu ser durante as horas que antecederam esse momento. Somos chegados ou somos partidos? Que sentimento atávico é esse embutido em meus atos, que faz com que, mesmo no momento do parto, eu precise dizer que chego? O que nos permeia, no processo de encarnação, para entrar neste que será conquistado como nosso mundo, a não ser a dor do ter de sair de onde estamos?

O grito que me encantou no dia de nascer da Inês é o mesmo grito que ouço ressoar nos pulmões da Ana, mãe do João. É o grito de fundação, o grito de decretação, o grito de aviso, o primeiro que jamais se repete. É o grito que nos une, seres que vivemos em dois mundos, num terceiro de substância efêmera e volátil, transcendental passagem, que dura apenas um instante e que, se não estamos atentos, vai-se irremediavelmente. É o grito de poder que junta o que é separado, e o grito do saber-se só daqui a pouco. É o grito em que ressoam abertas todas as possibilidades da vida de quem chega, o grito que alerta quem parte e que o desperta para a nova existência, forçando o seu desprendimento do limbo de lá e o seu adentramento no limbo de cá.

Pudessem os moribundos gritar (e não podem porque precisam escutar quem lhes grita do outro lado), gritariam – para despedir-se de nós, para nos libertarem desse limbo em que ficamos, para nos dizerem que alguém lhes grita do lugar para onde vão, certeza do não sermos nunca sozinhos.

O João nasceu ouvindo o grito poderoso da sua mãe, entregue ao ato que o tornou nosso. Neste dia consagrado à liberdade, o João pode começar a libertar-se das amarras do mundo que ainda carrega ao seu redor, e entrar pleno e rico no mundo que seus pais lhe estendem aos pés, com um amor que se derrama em lágrimas nesse momento do grito. As lágrimas, essas, uniram-nos a todos. Do grito, só a Ana foi capaz.

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