Uma das maiores diversões que tenho quando planejo uma viagem, mesmo que seja curta como será a do próximo domingo, pensando em termos de quilometragem (o que não quer dizer rigorosamente nada, mas tudo bem), é pensar-lhe a trilha sonora. Sentei-me agora mesmo aqui diante do computador, pensando em pensar em algo que me afaste um pouco do dia de hoje, dos movimentos internos todos que precisei acomodar dentro de mim, alguns tendendo ao doloroso. Decidi preparar, assim, a tal da trilha da viagem do próximo domingo.
De repente, enquanto começava a preparar essa base, espécie de pavimentação de ajuda ao transporte de um espaço físico a outro, fiquei matutando no que será que ando à procura quando gravo esses cd’s.
Não cheguei ainda a nenhuma conclusão, porque mesmo antes de partir, já fui: ao escolher esta ou aquela música já estou logo imersa no ritmo nervoso do motor do meu carro. Fiquei-me só nas sensações de permitir que dentro do automóvel possa se instalar, faixa a faixa, como numa mesa de banquete, toda a variedade de emoções que o dia possa me reservar, e quem sabe um tanto daquelas que apareçam assim de repente, sem pedido de reserva antecipado. Talvez seja isso que deseje prever, como se numa bola de cristal sonora. Tenho vários planos, penso, embora um se sobreponha, e deve ser por isso que este cd de domingo está nascendo tão eclético, tão variado. Através dele, vou poder imaginar-me dirigindo pelas estreitas ruas do sul da França, perceber o calor do Mali que faz a todos dançar para espantá-lo de dentro (e que provavelmente me fará abrir as janelas todas do carro), voltar a Salvador nessa voz que canta um Caymmi que nunca me disse muito, mas hoje diz por que quero reeditar-me. Escolho incluir a mesma música de uma outra viagem, que dificilmente acontecerá de novo – só que, ouvi-la, consegue inacreditavelmente trazê-la de volta, e isso me deixa feliz, mesmo sem estar dentro daquele carro e com poucas chances de voltar a estar naquelas mesmas condições. Apenas gravando o tal do cd, estou sentindo o mesmo que senti, e, como foi bom, é bom.
Há outras diversões, quando o assunto é viagem. Itinerário e outras praticidades não surtem tanto o mesmo efeito, ainda não acho graça em procurar o melhor caminho nesse botãozinho aqui do google em que se lê “mapas”, tão prático que chega a doer. Coisas menos óbvias ajudam a instalar o clima que pode transformar uns quilometrozinhos numa viagem intergaláctica, e eu com certeza é a essas coisas que prefiro. São essas preparações, difíceis até de explicar, que fazem com que viagens sejam descansos, paradas, amplas inspirações de novos ares e forças, momentos de descoberta de que tudo é muito mais do que vivemos e pensamos, que quase nada se reduz ao que vemos, menos ainda ao que acreditamos possível.
Viagens podem realmente ser viagens, e a pena é não conseguirmos a entrega incondicional a todas elas, de alma e corpo, podendo levar quem quisermos junto, porque a realidade nos limita e espreme, e nos deixa assim estes sujeitos inconsoláveis, presos aos predicados fechados que sempre, ou quase, terminam num ponto.
Espero, neste domingo, e nos demais que de mim se aproximem, encontrar dentro do meu carro, nas horas solitárias que me seguirão ao longo dos quilômetros, tudo o que imagino dentro de cada uma destas músicas, e que gravo agora com os olhos postos no dia de amanhã.