Do que não é lúcido

Há uns anos atrás, nem tantos se considerarmos a imensidão do oceano comparada a uma gota d’água (meu pai gostava de dizer isso, antes de tornar-se incapaz de falar), tive a sorte imensa de visitar muitos dos meus poetas favoritos. Alguns, foram-no apenas na altura, mas muitos deles vão permanecer nos meus lugares mais iluminados até o fim dos dias, creio.

Essas visitas não foram coincidências, porque eu realmente sentia a urgência do conhecimento, e de fato no espaço dos dois anos seguintes mais da metade deles morreu, o que me explica a tal da urgência. Todos eles eram já bastante velhos (o que me exime de qualquer responsabilidade), e para essas conversas eu lancei mão, aconselhada pela minha querida irmã, de uma máquina fotográfica.

Máquinas fotográficas produzem-me o mesmo efeito que os livros que carrego escondidos em sacolas para encontros desse tipo – envergonhados uns e outros, ficam-se onde estão, apenas espreitam para ver se têm a sorte de serem descobertos. Só nessas circunstâncias é que fazem a sua aparição, e pedem muito timidamente ora um clic, ora um autógrafo. Nenhum destes meus visitados percebeu a sua existência, e por isso eu não guardo nenhuma lembrança iconográfica desses dias tão cheios de sorte. (Para ser bem sincera, o único que me perguntou pela máquina, o caboverdiano Manuel Lopes, gostava muito de ser fotografado, e justamente nesse dia eu esqueci-me de levar a dita cuja.)

Em vários desses momentos me aborreci comigo mesma, “que disparate de falta de segurança em si própria, isto não tem graça nenhuma, tira lá a fotografia e põe-te a andar…”, mas depois fiquei na dúvida, talvez como consolo – será que eu devia mesmo lamentar a ausência desses registros? Passados os anos, fui chegando aos poucos à conclusão de que talvez tenha sido uma benção, dessas que nos acompanham vida afora e sobre as quais precisamos urgentemente recuperar a capacidade de admiração absoluta, para poder reconhecê-las quando acontecem, e não anos depois.

A imagem, parece-me hoje, poderia turvar-me a memória do real, fazer-me o que faz essa foto que tenho de mim pequena, no zoológico de Lisboa, olhando extasiada um imenso hipopótamo, algo que se parece remotamente com a primeira lembrança que (acho que) tenho da vida, mas uma lembrança de certa forma poluída pela imagem da polaroid do meu pai. Desta outra forma, só com o que me vem mal fecho os olhos, posso repetir a sensação de estar na mesma sala com a que (para mim) é a maior de todas as poetas, vendo-a (atônita) acender um cigarro atrás do outro ao longo de horas, muitas vezes deixando-o a arder sozinho no cinzeiro de prata, sentir-lhe dolorosamente a demência da senilidade instalada, conversar por isso com ela como se realmente eu fosse a sua sobrinha (e porque não?), vê-la esperar ansiosa pela mãe morta há mais de 40 anos. Foi enterrada passados poucos meses, e provavelmente nesse dia deva ter se alegrado com a (a)final chegada de sua mãe.

Mesmo assim, mesmo completamente fora do foco lúcido, continuou nessa tarde escrevendo à minha frente, com a mão livre do cigarro desenhando as letras no ar, como se tivesse uma tela diante de si e a colorisse com a escolha exata das suas palavras. Seu tema manteve-se o jardim e, do lugar onde se senta, ainda posso ver-lhe os olhos azuis opacos demorarem-se na glicínia em flor – “foi meu filho que a plantou, e ela cresceu tanto em um só ano”, ainda a escuto dizer. A flor da glicínia é azul como os seus olhos, ouço-me balbuciar e ela olha-me espantada, como se não me imaginasse capaz de o fazer. Não sei o que dizer, muito menos o que fazer, e devo estar com as mãos irrequietas – ela manda-me à cozinha, buscar-lhe um copo de água, mas primeiro me adverte a passar pela sala de jantar e reparar no magnífico azulejo que seu marido trouxe ontem à tardinha. O marido faz companhia à mãe há algum tempo. E eu vou à cozinha imaginando que bem poderia salvar-me deste roteiro insano o filho jornalista dessa poeta, a quem admiro também, inclusive pelos olhos. Não consigo focar meu próprio pensamento, lembro-me de ter pensado, tanto tempo à espera deste dia, e aqui estou feito uma tonta, sem conseguir eu também dizer coisa com coisa.

Volto e a minha irmã foi-se. Está no jardim, diz-me a empregada que entretanto apareceu,e logo atrás dela o filho outro, azulejista de profissão e com um passado e presente psiquiátricos que a sua agitação delata (eu dediquei tanto tempo a esta poeta que sei-lhe detalhes literariamente insignificantes como esse, lembro de ter-me ocorrido).

Pelo resto da tarde fico-me em silêncio a seu lado, vendo a tarde entardecer para além do Tejo que se vê à esquerda da janela de portada, linhas antigas desta casa secular. Ela diz algo aqui e ali, percebo as imagens que a escalam, que a engolem, que a atormentam e aprisionam em si mesma. O seu mundo é mais o delas que o nosso, e creio que tenta desesperadamente construir uma estrutura que mantenha os dois unidos, ainda que tão frágil e precariamente quanto o faria uma fina teia de aranha.

Por perceber isso, tiro do meu bolso as folhas de poemas que trouxe na esperança de que os lesse, e decido lê-los eu mesma em voz alta. E sinto-me num templo, e falo cada vez mais baixo, e entro tanto naquilo que eu própria escrevo que demoro a perceber que ela saiu do lugar que ocupava e sentou-se ao meu lado no sofá de grandes flores estampadas. Ela não me diz nada, mas quis-me parecer que o azul de seus olhos estava menos opaco e que de alguma maneira eu lhe devolvi um fio da sua esfrangalhada teia, e transportei-me com ela a qualquer lugar que não é nem este, nem o outro, antes aquele da sua provável origem, feito de sons e de sensações tornadas Palavra.

Esse encontro transtornou-me aquela semana inteira, deixando-me imprestável para qualquer outra coisa, e eu demorei muito tempo a refazer-me desse contato com o outro lado do mundo. O outro lado do mundo de alguém que percebo dentro de mim, o outro lado de alguém que me falava como se eu mesma me falasse, portanto meu outro lado do outro lado de mim.

Não tenho grandes medos na vida, mas não há ser humano de verdade que não alimente ao menos algum receio. O de morrer louca, como já me previu uma cigana que lia mãos em Sevilha e me mostrou seriamente esta minha linha da vida que acaba numa forquilha em ambas as mãos, e que eu vejo à espreita, se olho a linha materna da minha família, é provavelmente o que eu me lembro de ter há mais tempo, ainda que com o passar dele eu tenha chegado à conclusão de que isso pode ser uma vantagem. Sobretudo se considerarmos a cada vez maior variedade de loucuras às quais podemos sucumbir. Pode ser que seja uma questão de administração adequada, e pouco mais.

Mas essa tarde com ela fez subir a maré desse medo, uma maré que quase me afoga e me inutiliza. Imaginar-se louca é uma coisa; ver-se, outra bem diferente. Naquela tarde, algo em mim ficou entre um estágio e outro, suficientemente lúcida para poder ver a inevitabilidade da falta de lucidez.

Por isso, e porque realmente em nada valeria a pena, fico feliz de não ter nenhuma fotografia desse encontro. Talvez não tenha sido assim, talvez tenha sido pior, e eu prefiro guardar, dela, a imagem que tenho dos seus olhos a meu lado, procurando em desespero a reentrada no mundo que eu ainda habito, e do qual ela se despede lentamente a contragosto.

Uma resposta

  1. Cara Ana,

    Também gostaria de ter conhecido sua poeta maior, não porque sei de quem se trata, ou pelos trabalhos que pode ter feito, mas pela beleza plástica da descrição que você fez dessa tarde de encontro com um ser humano real, senil, que passeia pelos limites que separam e pelas próprias terras da lucidez e da falta dela, como eu também faço, vez por outra.

    Conceitualmente não deveria ter sido belo esse encontro, mas você o fez assim. Afinal a estética da loucura, seja senil ou patológica, só pode realmente ser vista por alguém muito especial.

    Lindo o texto

    Ivan

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