Em toda sombra, dizem-me, a luz rebrilha. Toda sombra é feita de luz, ainda quando resiste, ainda quando diz não. Amanhã é dia 4 de dezembro, amanhã é dia de Iansã, minha Mãe. Pressinto-a em seu caminhar por dentro dos ventos, recobrindo as minhas tempestades todas. Amanhã é dia de ventanias, de aberturas, resgates, de nos lembrarmos que o tempo sobre a Terra é curto e rápido. Meu tempo ainda é esta noite, cheia de sombras e escuridão profunda, noite de Lua Nova, noite de eclipse. O vento já se escuta.
Minha mão abre-se, nesta última Lua Nova do ano, e com ela sulcos novos para plantar enquanto me recolho. Lança-se a última semente na terra adubada da alma. Recolhem-se os medos, e lançam-se também eles ao vento. Lança e espada, escudo e casa: é Iansã que acena. Dobra-se, mas não quebra. Enverga, mas não cede: ao menor sinal, sua mão ergue-se e comanda o vento que tudo desaloja, tudo remexe, tudo liberta.
É ela quem em segredo me segreda, cúmplice da minha quase serenidade. “Em toda sombra, a luz rebrilha.” E assim ergue-se a luz, escuridão em volta. Pode ser que a escuridão cresça (tantas vezes!) – mas a luz não se apaga: quem se apaga são nossos olhos, medrosos de sombra e escuridão, assustados com o vento e sua solidão seca, inseguros diante do uivo selvagem nas frestas das janelas, assustados com o seu chicotear metálico, seu assobio penetrante. As sereias dos ventos cantam como as dos mares, e perdem-se entre nuvens como se entre ondas. O que escolher? O fundo do mar ou o cimo do céu?
São elas, as Sílfides, o canto de Iansã em seus ouvidos e gargantas. Aliadas e irmãs, desfiam o tempo que Iansã empunha. Ainda que lhe arranquem a pele e lhe estraçalhem os ossos, Iansã ergue-se sobre si mesma e sobre seus oponentes, amalgama-se por entre as tramas sonoras dos bambuzais, alisa sussurrando o cimo das águas de Oxum, levanta como rodas de saia as ondas de Iemanjá, sopra as brasas quentes de Xangô, corre por dentro dos veios dos rios lado a lado com Oxumaré. Agora está aqui, logo mais ali. Basta um sopro para erguer a poeira das estradas, a poeira dos cantos das casas, das esquinas, dos corações quase refeitos, dos pensamentos paralisados. Sua mão não perdoa – atiça os ventos para salvar seus filhos. Enlaça-os num bailado inebriante e leva-os, soltos e livres, na direção do futuro. Sequer volta seus olhos para trás. Seu caminho é o depois.
Lá fora, agora, há vento, escuridão, e luz. A luz é Iansã, a escuridão é da alma. Eparrei minha mãe – salve seu dia e seu poder de movimento.
Respostas de 3
Lembrou-me a música Iansã, cantada pela Maria Betânia.
Lindo texto.
Que aliás é linda! Abraço, Waldemar!
Excelente!