Uma das vantagens da audição é poder ouvir o que dizem de nós, nesse movimento que alguns gostam de chamar de “espelhamento”, o saudável exercício de refletir, observar, pensar, especular afinal. Quando o espelho não é baço, encoberto e acinzentado pelo tempo, ou alterado pelo desgaste dos produtos que usamos, querendo deixá-lo insana e artificialmente brilhante e reluzente, é ótimo. Quando o momento de espelhar está bem determinado, e se limita àquilo que compreende a função para a qual se usa o espelho, ótimo também, e o mesmo acontece quando o olhar que desdobramos na direção do outro está permeado de amor e compaixão, na sua forma concreta que não quer despertar dores desnecessárias das quais nada sabemos. Com condições assim ideais, podemos confiar na imagem refletida como sendo, de fato, parte da nossa própria reflexão, e aproveitar-lhe todos os momentos para ir e voltar e ir uma vez mais à morada da nossa própria percepção.
Gosto por demais dessas oportunidades, até pela dedicação que, de um jeito ou de outro, pressupõe o movimento do outro especular sobre nós mesmos olhando em nossos olhos – o que nos permite, a nós os observados, conhecer os outros através daquilo que eles dizem ver. A especulação bem formada engrandece o que especula e o especulado, e cria um entendimento profundo e verdadeiro entre almas. A reverberação dos sons que os outros escolheram para definir o que veem como nosso reflexo abre caminhos dentro de nós, suaves ou agrestes, enevoados ou luminosos. Nem todo espelho reflete o mesmo lado de nós mesmos, e provavelmente por isso alguns nos percebam as curvas sinuosas, outros as planícies serenas, outros o mar em fúria, outros o espaço aéreo entre as falésias e as ondas, e outros ainda duas ou três dessas paisagens ao mesmo tempo, seja porque estão por perto há mais tempo, seja porque a história nos antecede a todos e alguns sabem disso sem saber e sem se lembrar.
Nesse espelhar do outro, há quem prefira não abrir os olhos, furtando-se a ter o outro refletido em seu cristalino. Pode ser que receie encontrar-se naquilo que reflita, o que pode ser um problema, e assim olha-se só para dentro de si próprio e confunde-se a própria imagem com aquilo que era suposto refletir. E outros, ainda, decidem observar o que lhes interessa e aquilo que vai ao encontro de seus desejos e propósitos e, por eles, quaisquer observações cabem e valem. Mas estes são entre nós muito raros, quase inexistentes, e não vale a pena oferecer-lhes muito do nosso tempo.
Nesses processos, pode ser que às vezes ouçamos falar do nosso avesso como se ele fosse o direito, e como se devesse transformar-se e viajar para os lugares onde outros acreditam estar o que é direito. Imagens de que gostamos, e cultivamos, aparecem repentinamente transvestidas com as peles do desequilíbrio, da instabilidade, da insatisfação, da ausência. Estivessem esses olhos abertos, talvez conseguissem ver como se mergulha até o fim dos poços da vida, e se bate o pé no fundo e se volta à tona com o diamante que com esse mergulho arriscado conseguimos abraçar e trazer lá de baixo conosco. Mas, penso comigo, talvez só nos sonhos de Alice os espelhos mergulhem sem antes garantir seu tubo de oxigênio, numa entrega que não se preocupe em dividir quantos lances de escada se vencem a cada dia.
Imagens projetadas, e não mais refletidas, provocam o desconforto do próprio movimento. A projeção agudiza a consciência dos tentáculos por trás das superfícies espelhadas das paredes do poço em que se mergulha, estreitando-se para não deixarem passar aquilo que de fato somos. Na escuridão que essas superfícies formam, há aquilo que deixa de valer a pena, ainda que resistamos em manter acesa a luz que nos permita encontrar a saída e, com ela, o caminho que nos leve ao nosso destino.