De todos os suspiros que a vida tem-me arrancado, pensa Isaura, este foi o último. O derradeiro. Sentada no banco do ponto de ônibus, deixa o dia arrefecer as cores, indiferente aos demais que esperam, irmanados nessa intermitência entre estar em um lugar e dentro de pouco em outro. Não repara que de repente se senta ao seu lado um homem alto, de olhos grandes e negros, que a olha como se a reconhecesse. Isaura está perdida dentro do próprio pensar, equilibrando-se entre o coração intranquilo e a razão que lhe alfineta a alma. Diante de si não há rua, ao seu lado não há homem de desmesurados olhos negros, no seu passado não há mais ninguém. Tudo ao seu redor tem o sentido da voz de Armindo. E dentro dela, aflito e vazio como um barco que perdeu os remos em alto mar, um braço que luta por estrangular-lhe a voz que cria corpo na garganta. É aí que Isaura pousa a mão, da mesma forma que Armindo a envolveu com seus dedos longos e suas veias de cobre. Querendo mostrar-lhe o domínio que é preciso ter sobre o próprio fluxo de ar. Jamais perca o ar, dissera-lhe. E Isaura olhara-o atônita, o ar todo tomado pelo coração em chamas. Isaura só sabe viver de pequenas parcelas de ar; senão, vagas de fogo invadirão o seu ventre e a consumirão sem piedade.
É seu ônibus que pára diante de si e lhe abre a porta, num sibilar suave de engrenagem bem azeitada. E o motorista chama-a, e mesmo sem vontade Isaura embarca. Senta-se no último banco. Costume. Porque gosta de ver ao longe o caminho que as rodas percorrerão, a alternância de cores dos semáforos; sobretudo quando, como hoje, o dia morre nas ladeiras da cidade plana. Em casa, espera-a o silêncio. As coisas todas onde as deixou ao sair, as lentas aranhas do tempo desfiando um tempo enxuto de memória esquecida. Corre a espaná-las, esse será seu último suspiro, e nem a memória das coisas tecidas ela quer. Que os outros que venham sejam de outro tipo diferente deste, que me corrói o cotidiano até o último fio de osso, diz em voz baixa como se rezasse, enquanto se embrulha na pele quente das aranhas.
Não a espera nenhuma carta, nenhuma flor entreabrindo a maçaneta da porta, forçando um mundo que é só dela. Há muito que Armindo não faz nascer gestos onde se gestam universos – nunca os fez nascer, concorda Isaura consigo mesma em solidão. Os gestos são o meu universo particular.
Mas há uma janela aberta, e seu coração se encolhe, e depois se abre, e depois acena, e depois acende a faísca. E logo depois esmaga-se a si próprio na lembrança da própria mão abrindo a pequena tranca de metal, numa decisão de que o ar entrasse em casa na sua ausência. O ar que lhe falta e que a sufoca dentro da vida construída aos poucos. Não há ninguém nessa casa aberta, nessa morada atenta, nesse reino de sombras. O dia termina, flutua e despede-se. E Isaura deita-se ao comprido na cama, boca entreaberta de quem se quer de volta. Não suspira. O último suspiro já foi suspirado. Só as mãos, que se estendem abertas, teimosas, fazem crescer dentro de si esse peso, essa especiaria, essa forma desconhecida e lenta, a saudade suspirada.
Uma resposta
Socorro! Exatamente assim, me sinto hoje.
ABL