Melhor que pensar é sentir. E melhor que compensar é consentir. Melhor do que pensar o que o outro pensa é sentir o que ele sente. Gosto, demais da conta como diz minha amiga Valéria, quando as palavras se encaixam dentro de mim em forma e sentido. E gosto de sentir com o que o outro sente. E, portanto, consinto: tanto faz que pensemos igual ou diferente. Ô sossego.
Tudo isso a troco do que, pensará você. Porque fiquei pensando um tempo na palavra espiritualidade, surgida a meio de uma conversa gostosa como banheira perfumada. Pensei na sua morfologia, esse ser substantivo que se ergue do raso das coisas para afirmar-se existente. Pensei naquilo que dela dizem os dicionários: qualidade ou condição do que é espiritual. E parei de pensar, porque a nada me conduzia. E senti a tal conversa, mais do que a ouvi.
As palavras precisam da nossa existência mais humana. Daquelas qualidades que se encontram no lobo frontal, como escreveria um neurocientista. As que fizeram Jung dizer “Eu não preciso acreditar em Deus. Eu sei”. As que por causa dos gregos nós chamamos de entusiasmo: en-theos, o Deus dentro. As que fazem Leonardo Boff escrever que “é o saber-se pertencente a algo maior”. E as que reverbera Daniel Bohm, discípulo querido de Einstein, quando fala da existência de uma “ordem maior subjacente à ordem sensível”. São aquelas qualidades em nós que nos humanizam (e que Antônio Cândido diz ser a arte), é aquilo que nos retira do limbo do mundo, do limbo de nós mesmos, e nos estende novos horizontes, possibilidades, visões, encontros. A tal da espiritualidade. Por isso difícil pensá-la e mais tranquilo senti-la. Ou consenti-la.
Freud considerava a religião uma neurose coletiva, uma projeção do complexo pai/mãe num “Pai maior”. Uma forma também de evitar psicoses: a neurose ilude, mas permite que se viva. Do ruim, o menos pior, ou algo assim. Os mistérios religiosos são por definição caminhos grupais delimitados por códigos de conduta restritos e precisos, conjuntos de rituais e crenças estabelecidos dentro de instituições e organizações. Igrejas, religiões: sobre a espiritualidade não sei o que Freud pensava e arrisco errar, mas creio que foi Jung quem lhe dedicou tempo e pensamento, quem descortinou por trás da existência humana essa sobre-existência, essa transcendência a que chamou (erro de novo, talvez) espiritualidade. Coisa do espírito, dessa nossa parcela que é a que nos confere o estado de humano, e por isso dizia eu ali em cima que as palavras precisam do nosso mais humano: porque elas são puro exercício de espiritualidade, são o próprio espírito em ação. Quando deixamos, claro e óbvio como vidraça recém lavada.
Mas isso sou eu, que gosto delas e com elas me entendo. Para outros será a espiritualidade outra coisa, porque é momento e caminho individual e pessoal, uma jornada que é um estado, e não um modo de vida. Esse fio condutor que une tudo a tudo reconhece-se assim que uma mudança interna e profunda acontece. O que a prepara, à nossa mudança, é o nosso movimento, o nosso exercício de relação e reconhecimento disso que é mais que nós mesmos e que somos nós ao mesmo tempo. O novo rumo, o novo sentido são os atributos visíveis da espiritualidade.
O que pressupõe o exercício da busca, e por isso nessa conversa surgia esse atributo: espiritualidade é exercício. Sem dúvida. São passos que se dão, com um norte intuído, que a alma percebe e persegue. Às vezes, o norte não leva a canto algum. E perde-se tempo. Ou não. Porque cada caminho é caminho e cada ser é ser. E por isso é mais fácil consentir, e aproximar-se do outro pelas forças que vivem no outro lado do lobo frontal, e que ganha o nome de coração. A geografia humana não obedece aos olhos da razão.
Leio num site que atribui a Lucas, 10, 25-37 palavras que não saíram de sua pena. Mas faz sentido: “Espiritualidade é tudo que é capaz de produzir em mim uma mudança de pensamento, atitudes e conceitos, que me colocam num novo rumo e me oferecem um novo sentido para a vida”. Por isso, e outra vez consentindo: como, pela graça de deus, poderia alguém dizer a um outro alguém que a sua escolha de caminho está errada? Que a sua vivência espiritual está equivocada? Que seu caminho a nada conduzirá? O exercício da dúvida, outro atributo da espiritualidade humana, freia-nos a língua, impede-nos de dizer o indizível, de julgar o injulgável. Nos caminhos do espírito, a liberdade precisa imperar serena.
E, assim como nos céus, na terra.