Hora de jantar

Coisa mais engraçada, sair sozinha à noite. Não é uma experiência que me seja muito frequente, porque seja família, filhos, amigos, há sempre quem me rodeie (graças ao bom deus). Mas é que eu perco essa experiência sublime que é observar sem ter ninguém pra conversar e distrair.
Achei que depois de um dia esquecido de comer, valia a pena enfrentar a parrillada perto do hostel. Lá fui, agorinha à noite, sexta feira de céu limpo. Não sei quem, à entrada, olha com maior desconfiança – garçons, mulheres ou homens. Estou desenvolta hoje, demoro até a saber onde quero me sentar. Procuro um lugar estratégico de onde observar – preciso de ideias para minha personagem, que aliás detesta vegetarianos. Acabo de descobrir, passando ao largo da imensa grelha bem ao fundo do restaurante. Segreda-me coisas, ela. É só uma questão de ouvir.
Assim que chega a cerveja que pedi, cantos de olho olham pra mim. Posso ouvir os pensamentos em volta – além de sozinha, a mulher bebe. Ó céus. Morro de rir. Divirto-me mais ainda porque a cerveja é tamanho grande, e toda minha. Hei demorar para chegar ao fim e fazê-lo como quem saboreia o que bebe.
A tv está indefectivelmente ligada, na indefectível novela. Metade dos presentes finge que não se interessa, até aquele casal na mesa perto da entrada, cada qual pensando no que exatamente fazer quando sair dali.  Conversavam, quando cheguei, mas aos poucos as vozes foram apagando-se, as bocas ocupadas apenas em comer. Daqui a pouco ela boceja, olha em volta e sacode o cabelo bem cortado, mas se esforça em disfarçar – o que não é difícil, porque entretanto o homem de costas curvadas e camisa cor de nuvem se interessou pelo rumo da personagem má da novela (matou um, ou dois, ou três no decorrer da minha observação), nem percebe a boca que se abre atrás da mão. Assim que chega nova peça de carne à mesa, o interesse pela novela se desloca para o sangue na tábua. E ambos voltam a conversar, comentando o ponto certo do sal e a maciez do pedaço de ancho. Não os ouço, mas posso ver os lábios da mulher desenhando as palavras.
A mesa em frente vale a pena. Três homens e três mulheres. Uma delas termina apoiada nas costas do marido/companheiro/namorado, voltado o interesse por completo para a novela. As outras duas disfarçam, mas fazem de tudo para conversar com quem está à sua esquerda, e poderem ficar de frente pra tv. Os homens, dois deles de frente para mim, trocam um par de olhares, que me fazem automaticamente prestar imensa atenção na novela. O mais novo disfarça – cada vez que intercepto seu olhar, pega o guardanapo e enxuga alguma coisa – boca, mesa, rosto, braço. Uma graça – se tivesse os dutos lacrimais entupidos como eu, podia aproveitar e enxugar o olho sem parar. Decido não desviar o olhar, é preciso forçar a personagem a que se revele, aprendi. A reação é rápida; larga o guardanapo e pega nos talheres, num súbito e voraz apetite pelos restos mortais de uma salada caesar quase no final.
Viro-me para o lado e dou de cara com a senhora sentada na mesa mais próxima, olhando para meu sapato não sei se condenando-o ou se querendo saber onde o comprei. É pena que não pergunte, e que se vire para o que julgo seja seu filho, dando-me as costas, porque eu dir-lhe-ia que é um conforto só, passo o dia andando e nem sinto os dedos dos pés. Atrás de mim, em voz mais alta que o ruído de pratos e talheres, um homem comenta do trabalho que uma aluna apresentou hoje à noite. Sua companheira ri como riria de qualquer coisa que ele dissesse, porque seus olhos estão cheios de amor e seus ouvidos sequer ouvem direito. Mesmo de costas, é tão óbvio, no soar da sua gargalhada. E ao fundo, lado direito, uma mesa ocupada por três homens, todos virados para onde estou, obviamente comentando o que, se eu estivesse perto, certamente calariam. Se os olho mais dois minutos, levantarão o copo para me propor um brinde. Lembro-me de meu pai e sento-me com o que ele chamava de juízo. 
No meio de tudo isso, também eu fico presa à novela. A televisão está no modo mudo, portanto são só imagens, que dizem tudo, e até mais entusiasticamente, do que diriam as palavras das personagens. Tal o tenebroso poder da imagem. Cristiane Torloni diabólica consegue matar um na banheira, quase outra no viaduto e mais alguns num acidente de carro. Estou tão dividida entre as personagens da tv e as personagens da sala que não sei se as confundo a todas.  Compenetrada no prato que acaba de chegar, e que me dá um minuto de trégua nessa observação cruzada, esqueço-me delas. E de repente, sem que eu achasse que aconteceria, a personagem a que preciso dar vida emerge em meio às garfadas. Bem me diziam hoje que entre comer e escrever há grandes parentescos.

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