Dos lugares em que a energia de Ogum, a divindade guerreira iorubana, se encontra em forma concentrada, os que mais gosto são os trilhos de trem. Não a sua aglomeração em estações, pura confusão urbana de chegadas e partidas, mas a sua extensão férrea nos campos, os trilhos que penetram as matas e a atravessam, imutáveis e diretos. Gosto de andar por esses trilhos, entrar sozinha no silêncio que me entrega de bandeja a capacidade a veneração, e avançar sem ruído, cadenciando os passos até quase sentir a marcha militar andando por entre eles. Ogum é um trilho, contundente e firme, agarrado ao seu lugar e àqueles que defende e protege. Nessa qualidade de trilho, ergue-se o Ogum silencioso e persistente, a espada em punho. Olho-o com respeito e admiração; dobro meu joelho, dobro o corpo todo, inclino-me até minha testa encostar a terra. É preciso muito para demover um trilho de seu lugar, assim como é preciso muito para demover Ogum de uma causa.
Diz uma antiga lenda que Ogum, mesmo quando a água é abundante, prefere banhar-se em sangue. Não por vingança ou sadismo, mas por encontrar dentro do sangue o seu veículo de expressão na Terra. na sua forma mais fluida e sutil. Ferro em nosso organismo, o sangue é o calor que nos move, a regulação que nos protege, o fogo que nos habita, o vermelho escuro que preenche o coração, nosso órgão-fogo, lugar de habitação de Ogum em nós.
Aguerrido, Ogum não perdoa ofensas. Não se desencoraja nem perde a força. Onde muitos já teriam baixado os braços e abandonado a luta, sentado à beira da estrada e se conformado com o desastre, Ogum continua de pé. Ogum é sincero e franco, puro ímpeto.
Ogum não dorme, não se esquece, não abandona, não vira as costas. Enche-nos da energia do ferro estelar, cria em nós a força, o calor e a transcendência que nos percorre como sangue, preenche e inunda nosso coração e para nós transfere a capacidade de lutar contra a adversidade, contra a injustiça, contra a arbitrariedade, contra o descompasso que coloca em risco a própria humanidade.
Ogum, o ferro, é a enxada que tudo planta, a alavanca que tudo ergue, o machado que tudo derruba, a pá que tudo encontra, a picareta que tudo explode, a espada que tudo perfura e a faca que tudo corta. Suas ferramentas estão em nossas mãos – e a sua invocação eleva-nos até ele, até essas qualidades que são afinal nossas, muito humanas, em graus variáveis de manifestação.
E hoje é seu dia, na sua roupagem de Jorge. Mesmo tendo perdido o grau de Santo (Paulo VI, em 1960, achou que havia poucas evidências de sua existência real e muitas evidências de seu potencial revolucionário), Jorge, jovem soldado da Capadócia filho de mãe palestina, defensor dos cristãos perseguidos pelo imperador Diocleciano, está desde o século III por toda parte, inspirando arte, dando nome a cidades, castelos, ruas, comércios, igrejas. É Ganesh no panteão das religiões de base hinduísta, Odin entre os nórdicos, Marte para os romanos, Ares para os gregos.
Dê-lhe você o nome que desejar, hoje é dia de força guerreira, hoje é dia de forjar armaduras com a proteção do ferreiro maior, hoje é dia de recordar, com o coração em chamas, e reafirmar nossas vestes e nossa proteção. Dia de lembrar que é preciso pedir para ser atendido: pois então que se peça, e que o mundo se torne um lugar melhor para viver, onde todos possam comungar da força e da coragem de Ogum, que todos possam erguer-se da planície sorumbática de um dia igual ao outro, e perceber, ao seu redor e sobretudo dentro de si mesmos, a força quente do ferro que para nós escorre do Cosmos e grita, espada flamejante em punho: Ogunhê!
Eu andarei vestido com as roupas e as armas de Jorge
Para que meus inimigos tenham pés, mas não me alcancem.
Para que meus inimigos tenham mãos, mas não me peguem.
Para que meus inimigos tenham olhos, mas não me vejam.
E nem em pensamentos eles possam me fazer mal.
Armas de fogo meu corpo não alcançarão.
Facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar.
Cordas e correntes se arrebentem sem o o meu corpo amarrar.
Porque eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge.