- Sabe aquelas palavras, as de difícil tradução? Como huellas, por exemplo.
Encontrar-lhes similares em português é tarefa ingrata. Às huellas, eu prefiro-as assim, na língua de Antonio Machado, e é dele que me lembro no momento em que me aparecem. Porque Machado é o poeta do caminho, e eu penso no caminho que segue adiante, no caminho que se solta no vento ao passar, nos caminhos aos lados que às vezes se trilham, às vezes se sonham, às vezes enganam. E tudo porque lembrei de que “Caminante, no hay camino/se hace camino al andar”.
A quem caminha, o alerta do poeta: “son tus huellas el camino y nada más”. Aí estão as huellas. Volta-se a vista atrás, sob o olhar do poeta sevilhano, e lá está, claro e nítido como o amanhecer da areia, o caminho desenhado a cada passo. “Golpe a golpe, verso a verso”, porque é de golpes e versos que se constroem os homens.
Mas as huellas. Como traduzi-las? Pegadas? Impressões? Rastros? Marcas? É tudo muito pouco, nada diz diante das huellas: mais fundas que as pegadas, mais marcadas que as marcas, mais sutis que os rastros, mais sensíveis que as impressões.
São elas, as huellas, isto que permanece em mim nessa amálgama que não sei se chamo de caminho, se de tempo. Huellas construídas no compasso dos dias, espaço a espaço, galgando terreno por dentro de mim. São e ficam, espécies fossilizadas no chão do próprio caminho. “Todo pasa y todo queda”, e de tudo o que os meus olhos veem, são as huellas o que fica, são as huellas o que resta.
Huellas, descubro, deriva do verbo hollar. Pouco usado, tanto significa pôr os pés sobre algo quanto abater e humilhar. Talvez romântico, esse Machado para quem o caminho seja o andar, e as huellas sejam o que resta desse ofício de andador que é o nosso. Estas marcas de pés sobre nós: abatem-nos? Humilham-nos? São essência? Ou existência?
Ouço Machado em vários destes passos que ando no continente da memória. Ouço-o na voz do aluno a meio do filme “La lengua de las mariposas”, à porta da Guerra Civil espanhola que dilapidou a vida (também) de Machado. Ouço-o num quarto de hospital, último registro da voz de Miguel, a quem levei o único livro que tinha de Machado, porque Miguel estava indo, às portas do outro mundo, e achei ser-lhe boa companhia, eu que o conhecia tão pouco. Ouço-o dentro de mim nos versos que na minha boca têm gosto de espuma de mar: “Yo amo los mundos sutiles/ingrávidos e gentiles/como pompas de jabón”.
Entre o primeiro livro publicado, Soledades, em 1903, e o último poema encontrado no bolso de seu casaco, em 1939 (“Estos días azules y este sol de infancia”), vive um poeta que vale a pena ler, na sua própria língua, saboreando esses encontros de letras que a nossa língua não tem. Porque permite que nos carregue ao domínio da linguagem antes dela ter sentido, como a vida às vezes não tem sentido, e é bom que a linguagem lhe faça companhia. Especialmente quando não se vê nem ouve o caminho, e os pés decidem aquecer-se na areia para desgastar suas dores caminhantes. Depois, então, dá-se outra vez a razão a Machado: “se hace camino al andar”. Porque é preciso andar para tecer os caminhos.
Respostas de 2
Ana,
Tus huellas…me trazem memórias dos meus 20 anos em Jerusalém, aprendendo a cantar e a caminhar com o poeta.
Muchas gracias, amiga!
¡Siempre caminando, y cuidando de las rodillas, rsrsr, para caminar cada dia mejor!
Besitos caminantes con toda la luz 🙂
Neca
…Porque é preciso andar para destecer os nós feitos nos caminhos cegos do passado…