Like Underwood

Cheguei atrasada a House of Cards. Não sou propriamente uma fanática por séries, mas de vez em quando calha de atravessar-me o caminho uma delas. Primeiro, foi Gregory House. E agora são as artimanhas de Frank Underwood.
Não é a situação política atual que me leva a escrever sobre Underwood. Ainda que pudesse, e quem acompanha uma e outro saberá do que falo. É a atração que exerce sobre as pessoas a falta de humanidade. Não à toa, é grande o sucesso.

Adivinha-se essa falta logo nos primeiros capítulos. Underwood cativa pelos comentários sarcásticos (mas altivos), pelo desprezo que sente por tudo o que é mesquinho (ainda que sejam, ou talvez especialmente, as necessidades alheias). Talvez em algum momento surja em nós a incompreensão de por que continuamos assistindo, mesmo reconhecendo a manipulação, a perversidade, o oportunismo, a deslealdade e o interesse próprio como único motor da ação. Porque temos tudo isto dentro de nós mesmos, já me dizem aqui os amigos com quem converso a respeito. E eu respeito muito essa posição meio psicanalítica, mas o que me intriga é essa forma sedutora com que o mal se apresenta. E como se reproduz e, pouco a pouco, se torna pouco menos que normal. A potência que tem essa sedução de se apropriar dos nossos sentimentos, dos nossos valores, da nossa própria moralidade.

Aos poucos, quase se tornam simpáticos, esses personagens. Toleramos o intolerável. Rimos do que não é risível. Vamos aceitando, quase quase justificando o injustificável. Diremos consternados que a política é assim mesmo (como subir sem pisar num pequeno alguém aqui e ali?), que as coisas, afinal, podem mesmo levar as pessoas a situações extremas.
A tolerância pode ser um atributo sanguinário. Expande-se como cera quente derramada em mármore. Ultrapassa fronteiras e limites, sem que doa, sem que se sinta, sem que aparentemente nada se altere. Quando a conta chega, é invariavelmente alta. Às vezes, sequer se consegue pagar.
Os Frank deste mundo são como ele: implacáveis. Não hesitam em descartar quem atrapalha seus planos, ou suas vontades. Não nutrem mágoas, a não ser quando lhes podem valer de algo. Não sentem dor, e por isso sequer vislumbram a que provocam. O que existe é apenas o que lhes interessa, justificável porque lhes interessa.  Os demais, à sua volta, são como nós, seus espectadores: enquanto estivermos sentados em nossas poltronas, deixando-nos seduzir, deixando-nos guiar, deixando-nos manipular pelos seus olhares profundos e suas falas programadas, seremos úteis às suas estatísticas de audiência. Quando não, é só descartar. Logo ali, na primeira esquina.
Mas hoje não há mais como. Porque nesse virar dessa primeira esquina há uma menina de 16 anos estuprada por 33 homens, e ali acima, no Piauí, outra, agora vandalizada por cinco, e por todos os recantos deste país, a cada quatro horas, mais uma. Riem-se esses homens, e com eles riem-se outros, e com estes outros tantos, e há os que apenas esboçam um sorriso constrangido, e aqueles que se calam e se refugiam em qualquer lugar distante dessa menina desacordada de sexo e alma sangrando, e aqueles que justificam e aqueles que encolhem os ombros e decidem que a responsabilidade não passa em seu quintal. Uns poucos (entre eles talvez você que chegou até aqui) erguem-se indignados e perplexos. São minoria – há homens demais conseguindo entrever, por entre os fatos, atenuantes para a barbárie.

O fato é que a nossa abstinência de pensamento próprio e autônomo chega para cobrar-nos a tal conta, e é alta. Essa forma utilitária e perversa de tratar o outro, e neste caso especialmente a mulher, está por todos os cantos, e é promovida, e aceite, por todos os lados. Seja no outdoor ou na propaganda da revista de moda, numa série inofensiva ou na grande bilheteria, na conversa do bar na sexta fim de tarde, na sua rodinha de amigos homens, na piada que chega pelo twitter e faz sorrir, ou numa corte ministerial formada apenas e totalmente por homens. Dirá você que nada disso tem realmente relação – e eu lhe digo que tem, porque o nosso coração e o nosso cérebro aceitam e se acostumam  rápido demais o que nos chega bem vendido, e mais rápido do que você percebe a sua boca repete a estupidez que seu ouvido acabou de escutar.

Essa conta, que todos pagamos hoje junto com essa menina, vem embrulhada em mil tons de cinza. Este tempo todo em que não pudemos ou não quisemos pensar a respeito, e este nosso silêncio histórico, esta nossa necessidade de sermos tolerantes até mesmo com a iniquidade, compactua com a ferida alheia. Passamos tempo demais observando, aceitando, envergando, querendo enxergar alguma valiosa virtude nos jogos sedutores da escuridão, e silenciando quando duvidamos dela. Esse silêncio obsequioso, que pretensamente diz respeitar o outro, dar-lhe a chance de defesa quando já se sabe de todo indefensável, compromete e fere de morte a todos nós.

Ilustração para The imp of the perverse (O demônio da perversidade), conto de Edgar Allan Poe

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