Há muitos anos, aprendi algumas canções francesas. Aprendi a tocá-las ao violão, e cantava-as, a duas vozes, com meu inesquecível amigo Stéphane. Estávamos em Zinal, nas montanhas suíças, rodeados por pessoas que se procuravam a si mesmas e pouco mais – era muito. Numa noite, Stéphane chegou com seu violão e sentou-se como quem vai bater um papo. O papo durou muitos dias, entremeado por cifras e letras e descobertas de um país musical que eu desconhecia e ele me apresentou.
Entre essas descobertas, muitas delas tinham a assinatura de Georges Moustaki. Descubro hoje que Moustaki morreu há poucos meses, e não consigo deixar de imaginar um Stéphane ansioso à porta do céu, suando frio por poder receber o amigo antes de qualquer outra pessoa. E Moustaki deve haver chegado, com certeza de cabelos despenteados pela viagem e o mesmo olhar sonhador de sempre, e deve haver encontrado entre os braços de Stéphane o mesmo forte abraço que levou consigo.
Talvez tenham se sentado para ver o pôr do sol, se é que do céu pode ver-se o sol quando se despede da terra: um grego nascido em Alexandria, no Egito, entrelaçado às culturas judias, gregas, italianas, árabes, turcas e francesas, e um francês de Marseille, quase russo e cigano. Talvez Stéphane tenha começado a dedilhar “Portugal”, versão em francês do “Fado tropical” de Chico Buarque. Talvez tenha começado a cantar os primeiros versos como se sem intenção, com a voz cristalina cheia dos veios escuros e densos que a Rússia lhe legou, e que lhe permitia dançar por entre culturas como o próprio Moustaki fazia. Talvez tenha se emocionado em algum momento, talvez haja nesse instante portugueses à porta do céu, e talvez eles se sentem por ali, porque as lembranças da sua encarnação ainda persistem em seus órgãos, e precisem de mais uns instantes antes de irem à fase seguinte.
Moustaki deve ter-lhe pedido o violão emprestado, para apresentar-se a si mesmo a São Pedro. Imagino que escolha a mesma música que levantava qualquer plateia em qualquer lugar – qualquer, de fato, porque Moustaki era um errante por natureza, e pouco tempo viveu em cada país por onde passou. Ainda que tenha se ligado tão fortemente à França, a Georges Brassens e a Edith Piáf. Cantaria Le Métèque antes de atravessar o umbral. https://www.youtube.com/watch?v=TbhN8tYKjoA
Apaixonaram-se ambos, no fim da vida, que de um foi longa e do outro nem tanto, pelo Brasil, pela bossa nova, pela Bahia, por Jorge Amado. Talvez o bahiano afinal esteja também à porta do céu. Se é para lá que os comunistas peregrinam quando esta vida termina.
Esse Brasil que depois se tornaria a minha vida, a minha escolha de chão, o lugar de privilégio da minha alma, chegou-me de várias formas, vários sentidos. Passados anos dessas semanas em Zinal, Stéphane foi um dos primeiros a me trazer os trópicos do meu futuro – Moustaki fez-lhe companhia, na capa do LP que Stéphane me mandou já não sei bem onde morava eu na época.
E a porta do céu deve estar neste instante cheia, cheinha de gente, que chega de todos os quadrantes por onde ambos andaram, nessa aventura contagiante de descobrir o que mais gostavam de descobrir: pessoas. Só posso ser grata por ter sido uma delas, e porque cada um deles, à sua maneira particular, ter feito a sua aparição na minha vida, e me legado essa possibilidade de dor tão particular que é a saudade. Devem ser eles, e os coros dos anjos, que ouço cantar. https://www.youtube.com/watch?v=B_JXfpBRe5o
Ainda mais umas, para quem gostou:
La carte du tendre, Joseph e L’homme au coeur blessé
Águas de março
C’es Là
Ma liberté (um de seus últimos shows, em fevereiro deste ano)