Nerudianas

Para mi corazón basta tu pecho
para tu libertad bastan mis alas.

Penso que Neruda pode bem ter acabado de escrever estas palavras, como costuma, do seu baluarte diante do Pacífico, nessa sua opção de pescá-las conforme as vê formarem-se à sua frente. Talvez possa dizer, meses depois, quando o mar lhe falte e o céu se anuncie, que sente o fim do oceano diante dos olhos, a inexistência do arrastado barulho das ondas em seus ouvidos. A mesma coisa estampa-se hoje na areia da minha praia. Essa praia que são tantas e ocupam todas as paredes da minha morada.


Tenho a inspiração do poeta sentada ao meu lado, e com os seus olhos por dentro dos meus posso ler as palavras que evaporam de cada franja de espuma. Como se me escrevessem a mim mesma. Como se eu pudesse, a cada uma delas, transportar como desenho para adornar essa musculatura serena que tenho entre os dedos. A que os homens usam quando dormem. A que só se percebe por baixo de um lençol ténue, essa forma fugaz e branca e leve, como as nuvens que se formam na ausência e encobrem o horizonte aquático que ainda não existe diante dos olhos.

E aqui está o poeta, esse corpo feito todo inteiro de palavras.

Pergunto-lhe: se nos bastam peito e asas, para que os punhos fechados, os braços crispados, os olhos nesse arder acossado? Para que, se estão coração e liberdade à espera, e o peito aberto, e as asas estendidas? Do que estamos à espera? Nessa estrada que sabemos feita de nuvens? Como as que desenham as pegadas antes sequer que os pés se movam, antes que as ondas apaguem os rastros com os seus dedos de medusa? 

Talvez responda: a nossa geografia é feita de plumas, e a nossa anatomia do ar que encharca invisível a pele escassa dos pulmões. Talvez por isso o amor tardio, talvez por isso a capacidade pétrea de não nos arrancarmos de onde estamos por não saber onde cairíamos. Como se a vida fosse incapaz de ressuscitar os canais extintos.

Adormeço-me dentro das palavras, neste poente lunar que guardo entre os dentes, como se o apoiasse na língua e esta se compusesse de todas as palavras que penso para que o mundo se forme, úmido, à entrada da minha garganta.

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