O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Lisboa amanhece neste 9 de março fria e cinzenta. E ainda assim, a luz impera. De onde tira esta cidade a luz com que sempre amanhece? Saio de casa disposta a olhar com olhos de ver, ainda com a noite de ontem fresca dentro de mim.
Ouvi ontem, como verdade já sabida, que nada é acaso. A mola propulsora de Fernando Pessoa. E de Alberto Caeiro. E de todos esses irmãos que ele se criou para não ser sozinho, e ser o que todos provavelmente somos: muitos dentro de um mesmo envelope.
Fez ontem cem anos do dia triunfal da vida de Fernando Pessoa. E agora que já não é ontem, mas hoje, fecho os olhos. Estou outra vez, e ainda frescos os sentidos porque foi apenas ontem, dentro da casa onde o poeta viveu por 15 anos. Dentro do quarto que habitou, onde escreveu, onde dormiu, onde se postou à janela para ver a rua lá embaixo. Talvez seja esta a mais alta janela da sua casa, e debruço-me nela para ficar mais perto dele. Fico diante da sua cama, encosto-me a ela, sento-me nela. Seu chapéu jaz aí, displicente, como se ele tivesse acabado de sair e o tivesse esquecido, ou como se tivesse acabado de chegar e o tivesse atirado para cima da colcha amarela de chita de Alcobaça. Também está aqui, na parede entre as janelas, a cómoda alta onde esteve, nesse dia triunfal que hoje faz cem anos, um guardador de rebanhos que nunca os guardou, mas é como se os tivesse guardado, porque a sua alma é um pastor. E tanto faz se são fatos ou ficções, todas aquelas linhas que escreveu a Casais Monteiro tantos anos depois. Nesta noite, que porque nada é acaso posso chamar de sagrada, leem-se os poemas deste pastor, depois de sabermos que quem lhes deu vida dedicou-se a pensar muito mais do que este, que agora ouvimos. Desfiam-se as palavras que não são palavras, mas campinas, ventos, ilusões de letras a marcar a substância concreta do mundo. Em silêncio dentro deste quarto, nós que aqui estamos porque nada é acaso, ouvimos o que foi escrito, e a voz melodiosa da Natália Luíza que os lê, sabe o que está a fazer. Ou talvez não saiba, mas faz como se soubesse. O que me leva a ter certeza de que sim: sabe. Dessa maneira caeira de saberem-se as coisas, que é sabê-las porque sentidas, e não porque sabidas.
E aprendi muitas coisas ontem, desse Fernando Pessoa astrólogo que disse a si mesmo sê vários, mas sê inteiro, e que o Paulo Cardoso apresenta tão leve, tão fácil, tão evidentemente. E por querer ser inteiro não podendo ser único, porque somos tudo menos únicos, fingir ser vários para poder ser autêntico. Como nós, mas ao contrário, a fingirmos sermos um só para não nos perdermos entre os vários que vivem dentro de nós – ou para que os outros não se percam nesses vários que palpitam em nós. É mais provável a segunda opção.
A contraparte de dizermos “nada é acaso” está em “tudo é simbólico”. E simbólico é que nesse 8 de março estivéssemos nós que estávamos. E as coisas que aprendi, dessa maneira de se aprenderem as coisas que é sentindo-as sem as pensar, são um tropel de cavalos que agora se me impacientam na alma. Não aceitam rédeas nem sela, e nem sequer que eu me aproxime (ainda) para acariciar-lhes as crinas, olhá-los nos olhos, passar-lhes a mão pela maciez forte dos seus músculos lisos. Só posso admirá-los, assim de longe como se olham as paisagens mais secretas da alma. Assim de perto como olho agora, neste instante que se acaba assim que o escrevo, o encontro entre o rio e o mar. E assim como agora neste instante, porque nada é por acaso e tudo é definitivamente simbólico, entrego à fusão destes dois seres, rio e mar, a marulhar conjuras dentro da minha garganta calada, papeis dobrados em quatro, que as ondas vêm receber, com umas mãos que lembram o fado que me estenderam ao nascer. Agora, neste instante, sinto em mim que o amor é (não posso contestar) uma companhia, e não estou só, porque nunca estou sozinha.
Excerto de “O amor é uma companhia”, Alberto Caeiro in “O pastor amoroso”.
Fotografia: Ana Mata
Palestra da Paulo Cardoso e leitura dos poemas de “O guardador de rebanhos” na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.
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Assim como
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