Entre os muitos processos da Umbanda, a deitada é um dos que mais me encantam. Há casas e templos que a têm entre seus ritos e outros que não, por que a Umbanda é assim: nem todas as pessoas são iguais e fazem as mesmas coisas, nem todas as casas são iguais e fazem as mesmas coisas. E está muito muito certo que assim seja, desde que alguns princípios estejam observados.
É o que acontece na deitada, feita de puro amor, o princípio maior de toda Umbanda.
Chegam os filhos da casa no horário combinado e deitam-se no chão do terreiro: trazem a sua esteira, o seu lençol e a sua devoção pelos Orixás, pela essência divina que permeia toda a criação, das pedras à passagem do vento. Preparam as suas oferendas, essa forma de tornar visível a nossa compreensão e alegria pela vibração do divino e assim com ela nos comunicarmos. Acalmam seus corações da azáfama diária. Um traz um livro para ler durante esse dia de deitada, outro um pequeno trabalho manual ligado ao trabalho espiritual que realiza, um outro traz os pensamentos que precisa acalmar, outro as emoções que precisa soltar. Na deitada (que pode durar de horas a dias, e receber outros nomes dependendo de quem dela fale), o importante é cultivar a paz e o silêncio.
Deitam-se porque vão descansar. Descansar a alma no lago profundo que é a sua própria fé, esse lugar onde nos situamos quando temos certeza de sermos capazes de fazer o que devemos fazer. Descansam o corpo, descansam a alma, descansam o espírito. Retiram-se do burburinho diário, deslocam-se para um espaço e tempo de devoção e reverência. A devoção nos abre as portas do coração e a reverência nos faz rever quem somos, nos faz rever a essência do que somos, nos faz rever aquilo que nos acompanha sempre, ainda que às vezes esqueçamos.
Esse é um dos motivos pelos quais a deitada me encanta: porque permite espaço e tempo às pessoas, para que elas repousem e respirem, abrindo os braços e o coração àquilo que mais profundamente são.
Nós outros, os que ficamos do lado de fora do espaço da deitada (porque há um espaço determinado, protegido, silencioso, amparado e resguardado), passamos o dia trabalhando para que os que estão deitados o façam na maior qualidade possível. Resguardamos o silêncio, ficamos atentos. Preparamos a comida, cada tempero, cada elemento com seu porquê e sua forma. Pensamos nos motivos que nos levam a fazer o que fazemos. Ou não pensamos nada, porque ali não estamos por nós, mas por outros. Nos movemos na ordem, na disciplina e na limpeza. Promovemos harmonia, exercitamos a alegria de estarmos juntos no espirito da fraternidade que nos agrega uns aos outros. Enquanto eles se deitam na esteira, nós nos deitamos neste longo e frutífero rio que é o servir. Fazemos tudo o que fazemos pelos outros, os que deitam. E o serviço, essa dádiva, nos permite sair de nós mesmos sem nunca nos abandonarmos, e assim entrarmos no outro princípio da Umbanda. É quase no fundo aquele mesmo primeiro, porque a caridade é puro afeto e amor. A caridade desperta em nós e nos faz exercer o amor, amando-nos a nós mesmos como amamos os outros e vice-versa, e a deitada faz isso por nós.
Quando termina o dia, e nos alegramos com os cantos que entoamos e nos emocionamos com o mundo espiritual que de tão tão perto nos acompanha e sustenta, podemos levar nas mãos, de volta às nossas casas, esse presente tão especial que é perceber como é grande e poderoso tudo o que nos habita.