Os tempos morrem como morrem os homens. Podem haver imagens que fiquem gravadas e guardadas, mas há uma espécie de espírito, uma certa forma de vida e sentido, que se enterra quando aqueles que eram seus guardiões descem à cova. Morrem os homens, porque morrem os tempos? Porque a luta manifesta-se distinta? Porque os punhos se cansam de viver erguidos e sucumbem ao peso da passagem dos dias?
Vejo as imagens do primeiro dia de maio de 1974, em Lisboa (é desse dia a fotografia que encabeça esta memória, com Mário Soares e Álvaro Cunhal em primeiro plano, e é desse dia o link ao final). Sei-me ali, criança em estado de encantamento coletivo, entre aqueles que gritam o-povo-unido-jamais-será-vencido; sei-me ali entre os que ouviam Cunhal que já partiu e Soares que partiu estes dias. E penso em que como continuará no mar esse navio sem alguém à proa. Penso na memória que precisará (já precisa) ser lembrada, a memória que tenderá (já tende) a esquecer os Álvaros Cunhais, os Mários Soares, os Josés Saramagos todos que se vão sem nos deixaram no legado uma substituição à altura.
Talvez porque não haja altura. Penso Portugal e sobe garganta acima uma tristeza entre o quase raso e o quase fundo, balançando ao vento numa linha de pétalas vermelhas de cravo. Uma tristeza ocre que vou chamar de saudade desse povo que acreditava, de pés no chão e corações ao alto que, unido, jamais seria vencido.
Apetece-me gritar o mesmo. Porque a divisa mantém-se, e enquanto não nos unirmos, seremos fatalmente vencidos.
A Mário Soares, com o coração cheio dos poemas que soube de cor até o fim, uma viagem boa, uma passagem serena, uma visão perfeita de uma vida cumprida na defesa do que entendeu mais e mais importante que tudo: a democracia de um país destroçado por uma das mais longas ditaduras da história humana, como em todas as outras uma ditadura com milhares de torturados, mortos e desaparecidos. Mais importante de tudo era poder gritar aos quatro ventos essa fantástica conquista da Revolução de Abril: ser livre e ser feliz.