Como não lhes conheço os nomes, invento-os: da esquerda para a direita, um tanto desfocados, Júlio, Samuel, Paulino e Josias. Quatro amigos camaradas, quatro histórias cruzadas encontradas num banco de supermercado num dia de quarta feira.
Invento-lhes uma memória também, já que lhes inventei o batismo. E descubro por entre as prateleiras de onde os observo, com os poucos elementos que me oferecem, o pacto que fizeram anos atrás: contarem uns com os outros, “ainda que o jogo seja 0 a 0” (diz um deles, não consigo perceber qual), e sobretudo quando a morte inevitável aproximar seus passos. Qualquer lugar é lugar, desde então. E agora, todos aposentados e sem muito para fazer, fazem o que há de mais importante, que é dar linha livre ao pacto.
Discutiam justamente, nesse dia, a incrível vantagem de terem decidido firmar um pacto, em vez de terem chegado a um compromisso, que era a ideia original de seu Josias, que gosta de palavras que começam com “com”. “É que pacto”, ouço que dizem, “é coisa muito diferente de compromisso. E não fique triste, Josias, que pacto é coisa que se com-põe, que se pega com quatro mãos, e se arranja da maneira que se quer. No nosso caso”, e riem com gosto, “composição a oito mãos!” Deve ser bom assim, envelhecer distribuindo sorrisos novos, sem se preocupar com quem se esconde atrás das prateleiras para ouvir conversa alheia.
Seu Paulino, mesmo sem perceber que a única pessoa que o escuta sou eu mesma, discorre sobre o assunto. Descubro, através das suas palavras arrastadas de professor de latim de antigamente, que “compromisso” chega-nos (claro) do latim. Compromissum, basicamente um depósito em dinheiro como garantia. “Foi aí que começaram os problemas, lembram?”, interrompe Samuel. Seu Paulino continua: “…que vem de compromittere, que é precisamente concordar em pagar a tal quantia”. Anoto, para não esquecer, o que se segue: concordar, por sua vez, vem de promittere: prometer. A complicação piora: promittere deriva de omittere, que não é só o óbvio omitir, mas também deixar ir, ou largar a um canto. E mais: omittere deriva de mittere: jogar, arremessar (fora, depreendo), e daí ruma na direção do proto-indo-europeu per, que graças aos deuses não fazemos a mínima do que quisesse significar nesses primórdios dos primórdios. De garantias em dinheiro a omissões e coisas largadas e jogadas a um canto, começo a detestar seriamente esse tal de compromisso.
Nem preciso da conversa inaudível dos quatro senhores, concluo como eles: venham a mim os pactos, que de um simples pactum (acordo) ruma para um mais simples ainda pangere (compor): composição de desejos e aspirações, simples e serena, com cheiro de conforto e sinceridade e clareza e confiança. Qualquer coisa que se queira pôr, lado a lado. Garantia de, no máximo, liberdade. Liberdade de ir, e vir e, sobretudo, liberdade de ficar. Como o pacto destes senhores, de se amarem e se sustentarem até num banco perdido de supermercado em dia de quarta feira. Ou como qualquer pacto que se queira de vida plena, inteira, intensa e na direção que queira compor-se, com as mãos que estiverem ao nosso alcance.
Imagem: Tai Ribeiro, companhia boa de supermercado!
Respostas de 10
Que delícia de conversa, Ana! Que beleza de pacto!
Eles deveriam acontecer com mais frequência entre os homens de boa vontade. Eu com-pactuo esta (desta?) ideia.
ABL
AH!, QUE LEGAL!
FAMOS FAZER UM PACTO ENTÃO?
QUE TAL?
VC TEM PACIÊNCIA COM MEU TEMPO E EU COM O SEU.
ACHO QUE É A UNICA SOLUÇÃO.
ADOREI ESSA SUA EXPERIÊNCIA.
COMPRAS, CLIC, CUMPLICIDADE, INSIGHT( É ASSIM QUE SE ESCREVE?),
TUDO DE BOM. E ALGUÉM ACHA QUE QUEM GOSTA DE ESCREVER PERDE OPORTUNIDADES?
BEIJOS
LAURA
Coisa boa,amigo… Coisa pra se guardar, pra se levar dentro do coracao
commitment…
Oi, Laura – pacto feito! Bjs
Isso me fez lembrar do filme, lembra?! The commitments? 🙂
Do lado esquerdo do peito, caro anônimo!
desta ideia e de todas as outras que surgirem! Beijos, boa noite!
Ana, minha cola ao seu texto é do inicio ao fim na palavra – alcanse –
Os Pactos e Compromissos no inicio se parecem com o "alcanse " dos drones – aviões de guerra com pilotos automaticos – lançados em "alvos" no Afeganistão mas que matam civis também no chamado efeito colateral.
Mas graças a maestria de sua pena, os terriveis drones do inicio do conto vão se transformando pouco a pouco , em beneficas doses de remedio mélico para aposentados e cujo efeito colateral mais intensivo é o de querer alcansar e aprofundar a reflexão sobre a vida.
Muito bom !
Hamilton,
ótimo ana! obrigado.