Retiro coisas da casa. Para que a vida fique mais leve. Coisas meio bestas, como este cd da Simone que acabo de encontrar, aquele das canções de Natal. Mantive-o sob tutela anos a fio, porque quem o ofereceu o fez com uma intenção tão bacana que passá-lo adiante me parecia uma afronta.
Essas coisas que fazemos, entra ano, sai ano, de limpar armários e gavetas, é um recurso extraordinário para pôr a vida em ordem. Limpam-se as gavetas da cômoda e da alma, para que reencontrem esvaziadas a capacidade de conter o que é preciso. Dá-se todo o seu conteúdo, sem guardar nada, a não ser o espaço onde habita o que não vemos.
Isso, e aposto que você como eu não sabia, é perdoar.
Sabe aquela ideia de que perdoar é revelar as faltas, alheias e próprias, redimi-las, “lembrar sem sentir dor”, “o perdão restaura vidas”, “perdoar é aceitar a imperfeição do outro”, “perdoar não muda o passado mas engrandece o futuro”, “perdoar não é esquecer”, e mais todas as frases feitas que abundam nesse google de meu deus? Muito mais simples.Por isso eu gosto tanto das palavras, e de saber de onde elas vêm. Para poder usá-las consciente do seu poder, esse poder que cria a realidade à minha volta. As palavras são a arma mais letal que o mundo tem para me abater. Mas isso não vem ao caso, porque é sobre perdoar que eu quero escrever.
E tudo isso porque, descubro hoje cedo e feliz da vida, perdoar é muito simplesmente dar, e de forma completa. Per (completamente) + donare (dar). Deve ser por isso que as pessoas otimistas (ou qualquer um, em seus momentos otimistas) perdoam com facilidade. Por terem acesso a um campo mágico que faz com que, não importa o que nem quando, doem o que têm nas mãos, com a certeza que o que dão jamais lhes faltará. Talvez lá no fundo saibam que o que dão não lhes pertence. Por isso, dão em completude. Em entrega plena. E não sabem viver de outra forma, e nem se lembram, no minuto seguinte, de que deram o que deram, porque o que deram foi dado. E pronto. Pode até pertencer-lhes a memória do dado, mas é uma memória luminosa, porque o ato de dar se sobrepõe à coisa/sentimento/pensamento em si.
As pessoas otimistas (ou todos nós, em nossos momentos otimistas) olham adiante sem precisarem precisar uma contabilidade exata de perdas e ganhos do caminho percorrido. Seus olhos, aliás, estão invariavelmente postos adiante, seja na próxima curva ou reta, seja nos 365 dias que começam na virada do ano. O brilho está no porvir, para os otimistas, de quem os pessimistas riem com aquele movimento de cabeça que parece o lento movimento da corda do sino das catedrais. Ouço-lhes o respirar denso. Ouço-me o respirar denso quando deslizo para esse campo que não é a minha seara de vida.
Há aqueles que dizem não ser nem pessimistas nem otimistas, mas realistas. Dentre todos, são os que mais me espantam. Dizem viver no presente, sem alimentar o passado que já se foi nem o futuro que ainda não é. Usam a frase famosa do Dalai Lama com um olhar de “…e assim se caminha para iluminação”. Às vezes até tento, sobretudo quando me parece que não apreendi tudo o que o presente quis me mostrar. Mas o problema é que meu presente se dilata, abraça o futuro e recorda o passado num todo que a minha vida chama disso mesmo: vida. Talvez seja nessa direção que a discussão quântica, a sobreposição de camadas, o tudo agora ao mesmo tempo me agrade tanto. Ou talvez seja otimismo mesmo.
Li este ano que acaba, algures aqui na net, que alguém de uma universidade americana propõe a teoria de que, em 30 ou 40 anos, não conseguiremos mais identificar a nós mesmos pelas premissas que usamos até os tempos do hoje. Não poderemos, por exemplo (talvez a pesquisa seja sobre gênero, porque não lembro de ler sobre outro exemplo…), dizer-nos hetero ou homossexuais: diremos “estou num momento heterossexual” ou “estou num momento homossexual”. A vida andará nessa direção futura das coisas não serem mas estarem. Eu acho bom, mas pode ser otimismo. De qualquer forma, minhas gavetas estão vazias, os espaços estão cheios de ar, e esse ar tem nome: chama-se gratidão. O que foi dado, dado está: a vida passa por mim e me assiste, e meu único desejo é permanecer plena, íntegra e entregue. Este ano e todos os que virão.