Ser sozinho ou acompanhado?

Tenho às vezes a impressão de que uma vida quieta, calada e retirada faria a muitos mortais um imenso bem. Incluo-me nesse grupo, com a sensação de que há momentos em que me faria bem melhor do que o oposto estar-me sossegada numa espécie de espaço próprio solitário e vazio, estritamente delimitado e consequentemente protegido. Poupar-me-ia de alguns dissabores e pouparia os outros também dos pensamentos que me afligem e que, em vez de me desassossegarem a mim apenas, desdobram-se na direção dos que me ouvem. Nada disso é justo.
Mas é difícil, digo-me lúcida logo a seguir, porque provavelmente ficaria sem matéria. Lembro-me rapidamente de John Donne, de Hemingway como consequência, e se o segundo citou o primeiro, sinto-me no direito de citá-los a ambos: “Nenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo; cada homem é parte do continente, parte do todo; se um seixo for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se fosse um promontório, assim como se fosse uma parte de seus amigos ou mesmo sua; a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; por isso, nunca procures saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. Donne, poeta inglês do fim do século XV, escrevia isso na sua Meditação VII, e Hemingway pegou-lhe nas palavras literais em “Por quem os sinos dobram”. Thomas Merton, o padre católico que mergulhou na Ásia da primeira metade do século XX, usou a primeira frase para dar título a um de seus mais famosos livros: “No Man is an Island”. Deve haver mais e mais ramificações dessa noção tão básica, e eu deixo que todas elas me reconvençam lentamente. Meus pulmões dividem-se entre expirar e suspirar, e entretanto chega-me alguém à porta, pede-me um favor, pergunta-me alguma coisa; prova-me, com a exemplaridade simples do dois e dois são quatro, que tudo isso é verdade, e imediato, grotescamente imediato. O que me faz voltar a pensar que sim, que de fato a vida quieta e solitária viria a calhar, não fosse eu mesma autosabotar-me sempre nesse propósito, porque o convívio é como eu própria olhando para mim mesma, e eu gosto imensamente de vibrar na vibração alheia. É bom ter dúvidas, para tê-las dissipadas.
Sobre o que escreveria eu não fossem as ideias que me aparecem no meio de uma conversa, na hora de uma palestra, em meio a uma discussão que presencio? Há meses que decidi treinar-me em ausentar-me do que acontece ao lado cada vez que uma chispa de ideia me passa pela mente. Retraio o meu pensamento e uso o pouco que lembro do curso que fiz de leitura dinâmica para passar em revista todas as ideias que afloram num ápice. Enfio-as qual pérolas em um fio que consiga esticar diante dos olhos depois, ainda que nada tenha a ver com nada e esse fio dê origem a coisas tão díspares quanto polvos e solidão. Como por exemplo esta crônica, que nasceu de uma imagem que me veio um destes dias, em meio a uma discussão, de um ser grotesco com muitos braços inoperantes, daqueles que não atingem a sincronicidade mínima para se colocarem em movimento em direção a algum lugar pretendido. Dias depois consegui ver nessa imagem um polvo, nesse polvo a minha cozinha e nessa cozinha a salvação.

Uma resposta

  1. Ana,
    Tem tantas coisas que nunca vou conseguir decifrar nessa vida.
    Por pura coincidencia ( tentando telefonar via skipe- eu nem sabia que seu Blog estava acoplado no meu skipe)…. cai na sua cronica, que era o que realmente eu estava precisando ler….nao ler… sentir, compartilhar, aprender….
    Lots of love, – Margaret

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