Foi dessa janela, numa tarde de junho. Sabe aquelas tantas coisas que ela lhe dizia? Escaparam-se pelo flanco dessa cortina branca. Tanto tempo guardadas, com fome de ouvir, com fome de ser. Tanta fome, tanta. Cansaram-se, perderam o timbre, o brilho, o frescor juvenil dos encontros.
E ela foi-se, com as palavras, sem esperar sequer que eu lhe abrisse a porta. Disse-me, antes de passar a segunda perna pela abertura na parede, “portas? são espaços traidores”. E é ao meio termo que ela se referia (já tínhamos conversado sobre isso): portas entreabertas. Coisas assim. Não, não deixe de ouvir o que mais ela disse antes de sair e deixar a cortina impecável, branca, na parede branca, essa paz pintada para enganar os trouxas.
Daquelas coisas que ela lhe dizia, veja: arrependeu-se de várias. Em segredo, sei que saiu para erguê-las do chão onde ficaram caídas (as coisas que lhe disse), como pérolas opacas, órfãs de ostra e colar. Deve estar, neste momento em que falamos, tentando reerguê-las, limpá-las, acalentá-las, dizer-lhes: “não fostes vós, mas a falta de dedos”. Não sei se pérolas voltam à vida depois de esmigalhadas.
Ela lamenta, deixou escrito aqui num papel. Lamenta como um pássaro colhido dentro da gaiola, um pássaro a quem lhe cortaram as asas, um pássaro atingido pela pedrada sádica. Deixou as caixas todas em cima do armário. Vazias. Acho que ela não lhe deixou nada.
Só quero dizer-lhe, agora, que a vida é bem maior. E depois dissp saiu cantando. Disse que a terra é profunda. E eu me lembrei: a cova pode ser rasa. A terra é profunda.
Foto: Não é, mas podia ser do Antonio Claret, que foi quem a trouxe.