Botucatu, 11.11.13. Guarda Civil Municipal atende um chamado de emergência no centro da cidade. Questão de “desinteligência entre um casal”, diz a crônica policial. Ele, 26 anos, partiu para a agressão. Desconhece-se o motivo; talvez se aproxime daquele “não sei porque bato, mas ela sabe por que apanha”… Pelas fotos, percebe-se não a falta de inteligência, mas o excesso olímpico de estupidez. Ela, 27 anos, não tem dúvidas: devolve na mesma moeda, só que à facada. As fotos mostram o resultado nas costas do sujeito. Dizer que “houve uma desinteligência entre o casal” chega a dar vontade de rir.
Adoro eufemismos. Essas formas sinuosas de se escapar do que deve ser dito. Para não ferir suscetibilidades alheias. Não ferir corações. Machucar sem necessidade. Ah, quanta bondade. Dizem-se as coisas pela metade e fica a consciência com a aparência de limpa. E melhor, sem quase peso. Aham.
A atitude eufemística costuma responder por dizer de forma suave algo que de outra forma poderia magoar, incomodar ou agredir o outro. Ou seja: buscam-se palavras mais amenas para dizer algo que se quer dizer, mas não se sabe muito bem como, e ainda correndo o risco de ser chamado de bruto ou estúpido ou tosco.
As palavras prestam-se a isso. A serem manipuladas. Por isso é que há que prestar-lhes o devido respeito, e tratá-las com cuidado. Melhor nada dizer do que dizer pela metade, ou lançar mão do pó-de-arroz das avós pra cobrir o brilho que não se quer mostrar.
É um processo cognitivo da nossa evolução, diz um psicólogo e linguista canadense que vale a pena ler, Steven Pinker. Historicamente, trocam-se os nomes das coisas para que (espera-se) elas mudem. Ou mude a relação que temos com elas. Mas elas de fato só mudam quando de fato mudam as nossas atitudes (coisa mais óbvia…). Aquilo que fazemos. A nossa ação. Acho que ele tem razão, ao menos em parte. A mudança de palavras pode auxiliar a mudança de atitudes, pode ser até um sinal de alerta para a necessidade de mudança – mas só quando a mudança de atitude (portanto, de nós mesmos) está de fato no nosso horizonte. E não é assim apenas uma imagem tão linda, aquele ideal que não temos grandes pretensões de alcançar. Sobretudo quando pode custar-nos muito.
Por exemplo – roubo-o de Schwartzman, que o usou dia desses num de seus artigos. No começo do século XX, a palavra “alcoólatra” substituiu a usual, “bêbado”. Para retirar a carga negativa e preconceituosa, etc e tal. Depois, mudou-se para “alcoólico”. E agora a nossa opção é “dependente químico”. As pessoas continuam bebendo, e mais. Outro exemplo é a expressão “de cor”, que virou “crioulo”, que virou “negro”, que virou “afro-descendente”.
Claro que eu sei, e o Pinker deve saber também, que é tudo parte de uma mesma coisa. E que não é preciso escolher sempre uma coisa em detrimento de outra. Podemos transformar nosso “crioulo” em “afro-descendente” e transformar a nossa atitude na mesma medida. O problema é que é muito, mas muito mais fácil mudarmos o vocabulário e mantermos os vieses, do que mudarmos tudo ao mesmo tempo. Com o agravante de que algo dentro de nós parte do princípio de que, por usarmos outra palavra, temos outra maneira de ver as coisas. Não temos, a não ser que de fato tenhamos tratado a palavra como deve ser, e tenhamos aberto espaços novos dentro de nós, onde caiba o que é novo. Palavras novas inclusive, com seu novo brilho e a sua capacidade de transformarem o mundo em que nos transformamos.
Sabe aquelas situações em que usamos palavras doces para entregarmos verdades amargas? Sobre nós mesmos? Sobre as nossas escolhas? Sobre os movimentos que fazemos em nossas vidas? As palavras doces não adoçam o que as coisas são. As palavras doces traem a confiança de quem não espera o sabor amargo à entrada da garganta. Porque “palavras doces” não são palavras doces – são palavras falsas. Melhor as palavras agrestes, verdadeiras e inteiras. Sem desinteligências.